Caso Teixeira Onze – RN

Autoras: Ligia Moreira da Rocha1, Joane Luiz Dantas Vieira Batista1,2, Leonete Roseno do Nascimento3

1 – Oceânica – Pesquisa, Educação e Conservação, 2 – Rede MangueMar, 3 – Rede de Educação Cidadã/RN

O litoral do Rio Grande do Norte apresenta 410 km de extensão e uma multiplicidade de ecossistemas costeiro-marinhos como praias, campos dunares com lagoas, estuários, formações recifais, falésias e restingas. As atividades econômicas desenvolvidas nos 23 municípios da zona costeira são múltiplas e 14 estão diretamente relacionadas a conflitos socioambientais na zona costeira: parques eólicos, agricultura, pesca artesanal e industrial, comércio formal ou informal, produção de cana-de-açúcar, salineiras, pólo petrolífero, indústrias, turismo, ocupações irregulares permanentes em áreas protegidas, carcinicultura, piscicultura, construção civil, produção de lenha, atividade de concessionária de água e esgoto, atividade imobiliária-turística, lazer e esportes náuticos,  atividade de circulação de veículos automotores (DOMINGOS e DUARTE, 2019). As comunidades litorâneas são também diversas: têm sua origem nas famílias ligadas à pesca artesanal e agricultura familiar, que por sua vez foram constituídas principalmente por povos indígenas, africanos e colonizadores. A população costeira ligada à pesca artesanal está entre os grupos mais vulnerabilizados no estado e vem sendo posta à margem das políticas públicas, tornando-se invisível e, por isso, vivendo uma vida precarizada.

Neste mosaico de contextos, as injustiças socioambientais se sobrepõem, e o caso da comunidade de Enxu Queimado é um exemplo vivo da resistência que comunidades pesqueiras  devem ter para continuar existindo. Como se não bastasse a sobreposição de crises extremas vividas (derramamento do petróleo na costa brasileira iniciada em setembro 2019 e a pandemia do Covid-19 iniciada em março de 2020) impactando violentamente as vendas e o valor do pescado vendido, o ambiente de trabalho e o modo de vida das pessoas, a comunidade de Enxu Queimado enfrenta um processo de expulsão do seu território por parte da incorporadora Teixeira Onze Incorporações LTDA – ME. Enxú Queimado é uma comunidade pesqueira do litoral do RN, no município de Pedra Grande. Com origem aproximada em 1920, a ocupação centenária tem atividades oriundas da pesca, agricultura e criação de animais, utilizando áreas comuns para esses fins. Além das casas e do território da pesca, as famílias têm criações extensivas de bovinos, caprinos, ovinos e suínos em áreas que definem como sendo de expansão da comunidade.

Em junho de 2020 a Rede MangueMar/RN[1] recebeu a denúncia que a incorporadora aproveitou a crise sanitária para ameaçar a comunidade e reivindicar a reintegração de posse de praticamente toda a comunidade, através de Processo nº 0800205-36.2020.8.20.5151, na Comarca de São Bento do Norte. O representante da empresa apareceu no vilarejo e demarcou terras, colocou cercas, mediu casas, utilizando serviços de engenharia e topografia, sem conversar com os moradores. Contratou também dois seguranças para amedrontar a todos e derrubar os barracos construídos na área de expansão, zona rural ocupada pelos moradores para impedir o avanço da incorporadora sobre Enxu Queimado.  De acordo com moradores, já houve várias ameaças como colocar um trator por cima dos barracos para queimar (OLIVEIRA, 2020). A incorporadora propôs à comunidade regularizar suas casas para, por meio da escritura pública, vendê-las com um melhor preço, alegando a “chegada do progresso”, mas na verdade fomentando a evasão da comunidade, que provocaria a ruptura com seus vínculos ancestrais, profissionais, afetivos e familiares com a região (BARBOSA, 2021).

O conflito em Enxu Queimado começou em 2007, quando a Incorporadora Teixeira Onze comprou 184,76 hectares de terra por R$ 60 mil. No entanto, existem dois registros para a compra de terrenos diferentes com o mesmo valor: um deles de 144,57 hectares e outro de 184,76 hectares (OLIVEIRA, 2020). Por levantamento feito pela Unidade de Saúde de Enxu Queimado em junho de 2020, os 184,766 hectares adquiridos envolvem duas áreas: uma onde estão as 810 casas e 554 famílias (total de 2.389 moradores) e outra onde os moradores têm criações de animais e plantações como de macaxeira e batata. Pelo registro, a Teixeira Onze comprou o terreno da advogada recifense Dulce Maria Gueiros Leite, mas de acordo com os moradores de Enxu Queimado, essa advogada nunca foi dona das terras, apesar de ter construído uma casa de praia na comunidade.

Através do apoio da Rede MangueMar com parceiros, a comunidade de Enxu Queimado conseguiu realizar, em agosto de 2020, na colônia dos pescadores Z-32, uma reunião com o Secretário Estadual do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar (SEDRAF), também coordenador do Comitê de Resolução de Conflitos Fundiários Rurais, cujo objetivo é prevenir, mediar, conciliar e solucionar na esfera administrativa, de forma justa e pacífica, os conflitos fundiários no RN. Nesta reunião coube à SEDRAF: (i) encaminhar ofício ao Senhor Juiz de Direito da Comarca de São Bento do Norte, esclarecendo as providências administrativas que o Comitê de Resolução de Conflitos Fundiários Rurais está tomando em relação ao caso específico; (ii) Oficiar ao Cartório Único de Pedra Grande para realizar estudo da cadeia dominial dos imóveis. Coube aos representantes da Comunidade de Enxu Queimado fazer Boletim de Ocorrência nos casos de ameaças existentes e constituir advogado para defesa no processo de Reintegração/Manutenção de Posse. Coube à Polícia Militar intervir em qualquer ação de violência que ocorra na comunidade em função do conflito existente. Coube à Prefeitura Municipal de Pedra Grande ver a parceria com o estudo da topografia para agilização das coordenadas definidas das terras em questão. A Câmara Municipal ficou de acompanhar e colaborar com a gestão neste caso.

Com a intervenção do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte em 31 de agosto de 2020, a reintegração de posse foi temporariamente suspensa. O desembargador considerou que não havia dúvidas em quem de fato exerce a posse da terra em Enxu Queimado, além de tampouco ter sido demonstrado que a empresa teria a posse prévia da terra. Apesar da primeira vitória conquistada, a cadeia dominial dos hectares em questão não foi esclarecida, cabendo ainda recurso no processo. Os relatos de intimidação continuaram, assim como permaneceram em risco o território e o modo de vida em Enxu Queimado. A comunidade se manteve organizada, com abaixo assinado online para obter apoio e em campanha por visibilidade e justiça.

No dia cinco de abril de 2021 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ/RN) manteve a suspensão da reintegração de posse. A  Incorporadora Teixeira Onze havia recorrido da decisão anterior, mas teve a liminar negada por falta de documentos que provassem a posse da terra. Com a nova decisão, a terra fica garantida aos moradores locais da comunidade de Enxu Queimado Esse é mais um caso emblemático em que se tenta dar legalidade a uma injustiça realizada contra as comunidades litorâneas que ocupam o litoral há gerações.

Referências: 

BARBOSA, G. F. Enxu Queimado: uma comunidade de resiste. Carta Capital, 10/09/2020. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/enxu-queimado-uma-comunidade-de-pescadores-que-resiste/.

DOMINGOS, J, V. M. e DUARTE, M. C. S. Conflitos socioambientais na zona costeira do RN: diagnósticos e reflexões para o seu enfrentamento. XXX Congresso de Iniciação Científica e Tecnológica da UFRN, 2019. http://www.cic.propesq.ufrn.br/trabalhos.php##resultado

OLIVEIRA, C.  Comunidade pesqueira acusa incorporadora de ameaças e destruição de barracos no RN. Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 25 de Agosto de 2020.


[1] A Rede MangueMar é uma articulação que envolve Colônias e Associações de Pesca Artesanal, movimentos e articulações de pescadores e pescadoras, pastorais sociais, ambientalistas, pesquisadores/as, instituições de pesquisa e ensino, ONGs/OSC e cidadãos(ãs) comuns que lutam pela sustentabilidade socioambiental da Zona Costeira e Marinha Brasileira. No Rio Grande do Norte, a Rede MangueMar/RN foi iniciada em 2007, conta com 48 instituições e realiza encontros mensais para discutir os conflitos socioambientais no litoral potiguar.