Caso do Parque Estadual de Cocó – CE

O uso do discurso de conservação da biodiversidade como legitimador de injustiças socioambientais nas comunidades tradicionais de Sabiaguaba, Fortaleza-CE

Autores: Fernanda Castelo Branco Araujo[1] , Thomaz Willian de Figueiredo Xavier[2], Roniele Silva de Sousa[3]

Mundialmente reconhecidas como ferramentas efetivas para a conservação da biodiversidade, as áreas protegidas marinhas e costeiras enfrentam desafios quanto aos seus efeitos sociais (entre outros, Martin et al, 2013; Diegues, 2008). No bairro Sabiaguaba, a criação de unidades de conservação tem servido de palco para a intensificação da desigualdade socioambiental para com as comunidades tradicionais pesqueiras locais.

A Sabiaguaba guarda importantes riquezas socioambientais de Fortaleza. Nela situa-se a foz do principal rio da cidade, o Cocó, com seus manguezais, dunas e lagoas, além de um rico patrimônio arqueológico e práticas tradicionais, tais como a pesca artesanal, a mariscagem, a coleta de frutas e uma incipiente agricultura de produtos como maxixe e mandioca como fonte de recursos complementar (Plano de manejo, 2010).

A localidade é protegida, desde 2006, por duas unidades de conservação municipais: o “Parque Natural Municipal das Dunas da Sabiaguaba”  (PNMDS) e a “Área de Proteção Ambiental da Sabiaguaba” (APA da Sabiaguaba). O PNMDS objetiva promover a “efetiva proteção de unidades de preservação permanente (APP), sítios arqueológicos, componentes da paisagem e ecossistemas de elevada fragilidade e fauna e flora de relevantes interesses socioambientais e científicos”, ao passo que a APA da Sabiaguaba, delimitada em suas adjacências, funciona como zona de amortecimento dos impactos ambientais para o parque (Fortaleza, 2006).

As UCs municipais possuem instrumentos de gestão comuns. O plano de manejo previu o zoneamento, a caracterização histórica e sociocultural, reconhecendo a existência de comunidades tradicionais no local cuja origem remonta a aldeias indígenas do século XVII, além das medidas de gestão aplicáveis (Plano de manejo, 2010). Já o Conselho Gestor das Unidades de Conservação da Sabiaguaba (CGS), instituído em junho de 2012, por meio do Decreto municipal n° 12.970, possui poder deliberativo, de modo que todas as intervenções no local devem ser por ele autorizadas.

As UCs municipais, contudo, enfrentam importantes problemas de efetividade. A população local, habitante da APA,  sofre com carências crônicas de serviços públicos essenciais, tais como: ausência de saneamento básico e pavimentação, iluminação, segurança e transporte públicos precários.[4] Ademais, foram incapazes de frear projetos de desenvolvimento de grandes impactos ambientais, mesmo porque o CGS é composto por 50% de membros do poder público e 50% da sociedade civil, incluindo-se, entre os últimos, apenas quatro cadeiras para representantes de entidades locais da Sabiaguaba (Fortaleza, 2012). A construção da rodovia CE-010, em meados de 2014, cortando as dunas milenares protegidas pelo PNMDS, por exemplo, além dos distúrbios gerados pelo trânsito de veículos de grande porte, tem causado a quebra do ciclo de vida das dunas, que são móveis, desestabilizando o rio, os manguezais e, consequentemente a subsistência de pescadores e marisqueiras da região.[5]

No final de 2015, sob a alegativa de atender uma demanda ambientalista de três décadas, o Governo Estadual do Ceará passou a intervir no local a fim de oficializar uma nova área protegida na região, o Parque Estadual do Cocó, que viria a se sobrepor a parcela do território tradicional de comunidades pesqueiras, até então protegido pela APA da Sabiaguaba.[6] Diante de ameaças de remoção desencadeadas por representantes do Poder Público estadual, duas comunidades passaram a reivindicar oficialmente o título de tradicionais:  a  “comunidade da boca da barra”, de pescadores habitantes da margem direita da foz do rio há mais de um século, e a da “casa de farinha”, composta prioritariamente por agricultores que vivem na sua margem esquerda, região chamada de caça e pesca, há cerca de sete décadas (vide Figura 1).[7] Através de intensa mobilização social,[8] foi possível frear as ações iniciais do governo e acordar a inclusão de previsão normativa assegurando provisoriamente a permanência das comunidades, até que um termo de compromisso fosse firmado, com base em estudos antropológicos, no art. 4o do seu decreto criador (Ceará,  2017). Porém, durante todo o processo prévio à criação da unidade, não foi oportunizado à comunidade discutir sobre a adequabilidade da categoria escolhida pelo Poder Público, tampouco a questão foi votada pelo CGS (Câmara et al, 2016).

Mesmo que a luta das comunidades locais tenha alcançado vitórias sociais, a  implantação do parque tem impulsionado uma série de intervenções que pouco se preocupam com o desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais afetadas. Se, por um lado, o plano de manejo recém concluído foi elogiado pelo processo participatório que nele resultou, há várias  evidências de injustiça socioambiental causadas pela UC. Aproveitando-se da posição de presidente do Conselho Gestor, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) tem priorizado equipamentos recreativos que atendem a porções do parque situadas em áreas nobres da cidade,[9] bem como projetos, a exemplo da proposta de um centro gastronômico que, embora apresente o título de tradicional, não foi discutido com toda a comunidade desde as etapas iniciais, e pretende atrair grande quantidade de visitantes externos ao território tradicional, além de promover o aumento de atividades de turismo náutico bem na foz do rio.[10]

Ao mesmo tempo, a situação de incerteza quanto à permanência das comunidades tradicionais pesqueiras no local continua. Os estudos realizados pelo governo estadual geraram conflitos entre a população local, pois consideraram toda a região como habitada por uma única comunidade tradicional, incluindo nela marisqueiras e pescadores, mas também barraqueiros e outros ocupantes que recentemente chegaram à localidade e não desempenham papel relevante na conservação dos ecossistemas locais (Consórcio TPF/GAU, 2019). Esses estudos foram questionados pela população, mas até hoje não foi dada qualquer resposta pelo Poder Público, tampouco deu-se andamento à assinatura do termo de compromisso previsto no decreto criador do parque.[11]

Vê-se, assim, que as UCs em Sabiaguaba têm sido usadas prioritariamente para atender a demandas econômicas. Enquanto as soluções para o problema territorial da população tradicional são adiadas, o Estado aproveita para minar os seus modos de vida tradicionais e asseverar os problemas socioambientais que impactam o frágil sistema socioecológico local.

Referências:

CÂMARA et al. Relatório técnico: a delimitação do Parque do Cocó – conflito socioambiental decorrente de sobreposição com a APA da Sabiaguaba. Unichristus, 2016. Disponível em: https://unichristus.edu.br/wp-content/uploads/2017/05/RELATORIO-TECNICO-SABIAGUABA.pdf. Acesso em: 05 jun. 2018.

CEARÁ. Decreto estadual nº 32.248, de 4 de junho de 2017. Disponível em: http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/20170608/do20170608p01.pdf. Acesso em: 04 abr. 2021.

CONSÓRCIO TPF/GAU. Elaboração de projetos e estudos ambientais, projetos de infraestrutura e de educação ambiental necessários para subsidiar o processo de criação e implementação de unidades de conservação no estado do Ceará, vinculadas à secretaria do meio ambiente. Produto 2: Comunidade de Sabiaguaba. Sema, 2019.

DIEGUES, C. Marine protected areas and artisanal fisheries in Brazil. Samudra monograph, ICSF,  India, 2008.

FORTALEZA. Decretos municipais nº 11.986 e 11.897, de fevereiro de 2006. Disponível em: https://www.sema.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/36/2019/04/parque-municipal-sabiaguaba.pdf. Acesso em: 04 abr. 2021.

FORTALEZA. Portaria nº 50/2012, de 20 de setembro de 2012. Disponível em: https://urbanismoemeioambiente.fortaleza.ce.gov.br/images/urbanismo-e-meio-ambiente/infocidade/cga_-_regimento_interno_cgs.pdf. Acesso em: 28 mar. 2021.

MARTIN, A.; AKOL, A.; PHILLIPS, J. Just conservation? On the fairness of sharing benefits. In:  Sikor, T. (ed.). The Justices and Injustices of Ecosystems Services. Abingdon: Routledge. p. 69-91, 2013.

PLANO DE MANEJO: Parque natural municipal das dunas de da sabiaguaba (PNMDS) e área de proteção ambiental de sabiaguaba (APA), 2010.

PLANO DE MANEJO: Parque estadual do Cocó. 2020.

Figura 1: Mapa da poligonal do Parque Estadual do Cocó, com destaque para a região da foz do rio Cocó, onde há sobreposição com a APA da Sabiaguaba.


[1] Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília e a Aix-Marseille Université.

[2] Doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará.

[3] Líder comunitário, pescador da comunidade tradicional da boca da barra da Sabiaguaba e conselheiro suplente do Parque Estadual do Cocó.

[4] Vide notícias relatando, respectivamente, problemas de sanemaneto básico, despejo de poluentes no rio e violência, que corroboram o afirmado: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2012/11/59-das-casas-em-fortaleza-tem-servico-de-saneamento-diz-ipece.html; http://g1.globo.com/ceara/noticia/2011/08/875-do-rio-coco-esta-poluido-diz-estudo-do-governo-do-ceara.html; https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/dois-corpos-sao-encontrados-decapitados-no-mangue-da-sabiaguaba-1.1850202; http://g1.globo.com/ceara/noticia/2011/07/moradores-do-bairro-sabiaguaba-em-fortaleza-reclamam-de-assaltos.html.

[5] Após mobilização da comunidade, o Ministério Público  Estadual entrou com uma ação civil pública para solicitar a reparação dos danos ambientais no PNMDS, conforme noticiado em: http://www.mpce.mp.br/2019/08/27/mpce-ingressa-com-acao-contra-governo-do-estado-e-prefeitura-de-fortaleza-para-reparacao-de-danos-ambientais-nas-dunas-da-sabiaguaba/.

[6] Uma linha do tempo contendo os principais fatos relativos ao processo de regulamentação do Parque Estadual do Cocó pode ser consultada em: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/06/demarcacao-do-parque-do-coco-de-1977-ate-2017.html>. Acesso em: 16 jul. 2018. Vale mencionar que a região ganhou mais uma UC municipal em 2009, a Arie das Dunas do Cocó.

[7] A quantidade de pessoas que compõem essas comunidades é incerta, tendo sido possível encontrar menções que variam de 20 a 150 casas para a comunidade da boca da barra e de cerca de 17 núcleos famíliares para a casa de farinha. Vide: https://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2016/06/03/noticiasjornalcotidiano,3619877/familias-lutam-para-permanecer-na-sabiaguaba.shtml; https://www.oestadoce.com.br/geral/comunidades-dependem-de-estudo-para-continuar-no-local/. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/estudos-definirao-continuidade-de-povos-tradicionais-no-coco-1.2006183.

[8] Conforme reportado pela mídia local:  <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/proposta-busca-garantir-permanencia-da-comunidade-da-sabiaguaba-no-parque-do-coco-1.1569050?page=8>. Acesso em: 17 jan. 2021.

[9] Notícias relatam  a ordem de entrega dos equipamentos do parque: <https://www.ceara.gov.br/2016/03/20/governo-do-estado-inaugura-equipamentos-e-anuncia-acoes-de-melhorias-para-o-parque-do-coco/>; <https://www.sema.ce.gov.br/2020/07/02/novos-equipamentos-no-parque-do-coco-devem-ser-entregues-ate-o-fim-do-ano/>.

[10] O projeto foi divulgado em: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2021/01/08/projeto-transforma-barracas-sabiaguaba-centro-gastronomia-veja-imagens.html>.[11] A população e movimentos socioambientais que atuam na região têm se utilizado de seus perfis na rede social Instagram para denunciar tais ocorrências. Vide: @roniele.suira; @fortalezapelasdunas; @institutoverdeluz.