Caso das Marisqueiras de Maracaípe – PE

Autores: Daniel Brandt Galvão; Sara de Castro Loebens

O litoral do Estado de Pernambuco compreende em torno de 187 km de extensão (FIDEM, 2000). Apesar da reduzida extensão de faixa costeira, os variados ecossistemas aquáticos locais proporcionam uma rica dinâmica ecológica, sendo determinantes para práticas materiais e imateriais de homens e mulheres inseridos na pesca artesanal, atividade secular e fundamental fonte de renda e do modo de vida das comunidades pesqueiras da região (RAMALHO, 2019a). Essas comunidades, compostas por pescadores de lagosta, caranguejo, ostra, marisco e peixe, capturados nos manguezais, recifes e após os recifes, foram duramente afetadas pelo evento de derramamento de petróleo que teve início no dia 30 de agosto de 2019. 

Segundo a Marinha do Brasil, entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020 foram recolhidos aproximadamente 5 mil toneladas de resíduos oriundos do derramamento (MB, 2020), que afetaram 1009 localidades, 11 estados (sendo 9, pertencentes à região Nordeste), mais de 40 áreas marinhas protegidas, ao longo de mais de 3 mil km de extensão (SOARES et al, 2020a; SOARES et al., 2020b; WWF, 2021a). Para termos uma dimensão melhor da quantidade, que deu ao desastre a categoria de maior da história do país, esse total corresponde a 37 mil barris de 159 litros (WWF, 2021a). Segundo o diretor de controle de fontes poluidoras da Agência Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) Eduardo Elvino as “..localidades em torno de 120 quilômetros, em linha reta, foram atingidas de alguma maneira” (MAR SEM FIM, 2019). Apesar disso, até o presente momento não foram definidos a origem, o ínicio e muito menos os responsáveis pelo desastre, além de evidências documentais da má gestão do Governo Federal Brasileiro perante a crise ambiental.

O Estado de Pernambuco foi atingido por duas ondas do derramamento de petróleo, a primeira ocorreu no início de setembro de 2019 em uma proporção leve, isto é, com pequenos fragmentos espalhados pela praia e que não afetou o trabalho das marisqueiras de Maracaípe. No entanto, a partir do dia 17 de outubro, uma segunda onda de petróleo atingiu a costa com muito mais volume. Nesta, a primeira praia atingida foi no extremo sul do Estado, no município de São José da Coroa Grande e as manchas foram seguindo no sentido da corrente sul-norte, atingindo o manguezal de Maracaípe (Figura 1) às 4 horas da manhã do dia 19 de outubro de 2020. Neste mesmo dia, todo o município de Ipojuca, onde fica Maracaípe, foi atingido pelas manchas de petróleo. Nos dias que se seguiram, o município de Cabo de Santo Agostinho, vizinho de Ipojuca, também foi atingido, tocando principalmente a região estuarina de Suape e as praias de Enseada dos Corais, Pedra do Xaréu, Itapuama e Paiva. A praia de Itapuama foi uma das mais impactadas pelo derramamento de petróleo no Nordeste  (Figura 2), com estimativa de mais de mil toneladas recolhidas (WWF, 2021b), mobilizando por 10 dias consecutivos (20 a 29 de outubro de 2020) aproximadamente 5 mil voluntários e órgãos ambientais para retirada do material contaminante (SALVE MARACAÍPE, em preparação).

Figura 1. Manguezal de Maracaípe. Foto: Daniel Galvão / Salve Maracaípe

Figura 2. Praia de Itapuama atingida pelo derramamento de petróleo em 2019, litoral sul de Pernambuco. Acima: Ação dos voluntários na retirada de resíduos da praia. Abaixo: Retroescavadeira retirando grande quantidade de resíduos da praia. Foto: Marcela Cintra, 2019.

Diante da gravidade do desastre, todo o litoral sul do Estado de Pernambuco voltou suas atenções para a retirada do petróleo das praias. O comércio, principalmente os bares, restaurantes e ambulantes de praia pararam suas atividades, devido às proporções do derramamento na região. Essa situação impactou diretamente as marisqueiras de Maracaípe, que dependiam do funcionamento do comércio de praia, principalmente os bares e restaurantes, para escoar a venda dos mariscos. Sem conseguir vender, sem reservas e sem assistência governamental, pelo menos 150 famílias de marisqueiras enfrentaram sua maior crise econômica.  Essas mulheres passaram por grande dificuldade, principalmente durante os primeiros meses do ocorrido, uma vez que, por medo da contaminação, a população passou a não comprar pescados como marisco, caranguejo e aratu, afirma uma marisqueira da região. Segundo Ramalho (2019b), as marisqueiras provavelmente foram as mais afetadas, com recuo da venda de produtos estuarinos entre 93% e 100%.

A crise das marisqueiras causada pelo derramamento de petróleo revela um grave caso de injustiça socioambiental, onde elas são duramente prejudicadas por uma das mais poderosas e ricas indústrias do mundo: a indústria petrolífera. Como o nome do culpado por esse crime ambiental não foi revelado ou descoberto, as marisqueiras não receberam nenhum tipo de ressarcimento ou apoio. Esse impasse resultou então na dependência direta de ajuda governamental para mitigação dos prejuízos sofridos, o que também não aconteceu. Apesar de terem sido recentemente reconhecidas através da Lei Nº 13.902, de 13 de novembro de 2019 (DOU, 2019a), que “Dispõe sobre a política de desenvolvimento e apoio às atividades das mulheres marisqueiras”, após o veto do Artigo 4º, em mensagem nos Despachos do Presidente da República (Nº 587), realizado no mesmo dia de publicação da Lei (DOU, 2019a), que versava sobre o dever do poder público de dar preferência ao pagamento de indenização as marisqueiras em caso de desastres ambientais provocados ou não por ação humana em áreas de manguezais, essas mulheres continuaram sendo desassistidas.

Um outro agravante, oriundo da desassistência governamental, foi o fato das marisqueiras não receberem o auxílio emergencial do petróleo de R$ 1.996,00 pagos pelo Governo Federal, oriundo da Medida Provisória 908/2019 (DOU, 2019b). Elas não tiveram acesso a este auxílio porque não tinham o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), fazendo com que sobrevivessem à base de doações e se alimentando por meses do próprio marisco. Os principais fatores associados a essa dificuldade em regulamentar a atividade das marisqueiras é mediado, primeiramente, pela demora na aceitação das mulheres pescadoras/marisqueiras, que ainda sofrem com o não reconhecimento histórico por seus pares e pelas políticas públicas estatais que tendem a excluí-las, marginaliza-las e invisibiliza-las dos aspectos sociais, econômicos e culturais a despeito da sua importância como fator estruturante da pesca artesanal. Além disso, existiu a exclusão dos pescadores e marisqueiras que deveriam ter sido indenizados, uma vez que muitas comunidades não são suficientemente organizadas de acordo com a lei para que todos sejam beneficiados através de um auxílio governamental (RAMALHO, 2019a). Esse último fato, também se explica por fatores relacionados a problemas estruturais governamentais e que não visam a melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais, como por exemplo à falta de modernização do processo de registro, lacunas entre as estatísticas oficiais e as reais, a obrigação do uso de um sistema online (ESTEVO et al., 2011).

Problemas relacionados à preservação e resguardo da saúde tanto das marisqueiras, quanto dos pescadores e voluntários que auxiliaram no recolhimento do petróleo, são outros agravos oriundos do derramamento de petróleo e foram amplamente discutidos por pesquisadores e evidenciados em relatórios (SEVS, 2019; RAMALHO, 2019a; COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2019; ARAÚJO et al., 2020; ESTEVO et al., 2021). Segundo a Secretaria Executiva de Vigilância Sanitária do Estado de Pernambuco (INFORME Nº 06/2019) (SEVS, 2019), os sintomas apresentados por pessoas que entraram em contato com o petróleo foram desde cefaleia, náuseas, tontura, a dores abdominais, irritações e lesões cutâneas, febre, confusão mental, entre outros. O Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho da Fiocruz Pernambuco, também alerta que o óleo bruto de petróleo, que possui solventes extremamente tóxicos e cancerígenos (aromáticos e alifáticos), podem causar sérios distúrbios neurológicos, doenças pulmonares, hepáticas e renais, entre outros (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2019). Para as marisqueiras, o risco pode ter sido ainda maior. Estevo et al. (2021), realizando entrevistas em comunidades pesqueiras localizadas nos municípios de Paripueira e Barra de Santo Antônio em Alagoas, evidenciaram que as marisqueiras da região tiveram a maior exposição ao composto pelo contato direto com a água, onde as mesmas também relataram o aumento de doenças de pele e surtos de diarréia causados pela ingestão de peixes contaminados.

O Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC) (Decreto 8127/13), só foi formalizado pelo Ministro do Meio Ambiente no dia 11 de outubro de 2019, quase um mês e meio depois do início do desastre ambiental (ESTADÃO, 2019). Nele, uma das obrigações de competência do Ministério da Saúde é dar “apoio às ações de prevenção, preparação e resposta” através da mobilização do Sistema Único de Saúde (SUS) (DOU, 2013). Apesar disso, “A União não implementou o Plano Nacional de Contingência nem no tempo nem na forma devida, prevista na legislação. Sem medidas ágeis, efetivas e com emprego das melhores técnicas disponíveis, o desastre socioambiental se tornou muito maior. E os impactos não foram e não estão sendo devidamente tratados.”, afirma o Procurador da República do caso judicial que questiona a omissão da União na implementação do Plano, Ramiro Rockenbach do Ministério Público Federal em entrevista ao Marco Zero Conteúdo (2020).

Passada a crise do petróleo, em um momento que as marisqueiras de Maracaípe estavam começando a se reerguer, uma nova crise chegou, desta vez a pandemia causada pelo coronavírus. Infelizmente, o horizonte ainda é de muitas incertezas e insegurança, as marisqueiras seguem isoladas, com pouca visibilidade social e sem assistência governamental efetiva para retirar documentos que permitam acesso a benefícios.    

Referências

ARAÚJO, M. E.; RAMALHO, C. W. N.; MELO, P. W. Pescadores artesanais, consumidores e meio ambiente: consequências imediatas do vazamento de petróleo no Estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 1, e00230319. 2020. doi: 10.1590/0102-311X00230319.

COMBATE RACISMO AMBIENTAL. Carta aberta pela declaração de estado de emergência em Saúde Pública. Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho/Departamento de Saúde Coletiva/Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz Pernambuco. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2019/10/29/carta-aberta-pela-declaracao-de-estado-de-emergencia-em-saude-publica/. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

DOU. Diário Oficial da União de 23 de outubro de 2013 – Seção 1. 2013.

DOU. Diário Oficial da União de 14 de novembro de 2019 – Seção 1. 2019a.

DOU. Diário Oficial da União de 29 de novembro de 2019 – Seção 1. 2019b.

ESTADÃO. Salles só formalizou plano 41 dias após manchas aparecerem no Nordeste. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,salles-so-formalizou-plano-41-dias-apos-manchas-aparecerem-no-nordeste,70003059406#:~:text=BRAS%C3%8DLIA%20%2D%20O%20Plano%20Nacional%20de,outubro%2C%2041%20dias%20depois%20de. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

ESTEVO, M. O.; LOPES, P. F. M.; OLIVEIRA JÚNIOR, J. G. C.; JUNQUEIRA, A. B.; SANTOS, A. P. O.; LIMA, J. A. S.; MALHADO, A. C. M.; LADLE, R. J.; CAMPOS-SILVA, J. V. Immediate social and economic impacts of a major oil spill on Brazilian coastal fishing communities. Marine Pollution Bulletin, n. 164, 111984. 2021. doi:10.1016/j.marpolbul.2021.111984.

FIDEM. Litoral de Pernambuco: Um estudo propositivo. Recife: Fundação de Desenvolvimento Municipal, 2000. 76 p.

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MARCO ZERO CONTEÚDO. Um crime sem culpados, punições nem multas. Disponível em: https://marcozero.org/crime-petroleo-nordeste-sem-culpados-nem-multas/. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

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RAMALHO, C. W. N. Os possíveis impactos dos vazamentos de óleo nas comunidades pesqueiras artesanais em Pernambuco: um breve e provisório balanço. Recife: Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (NUHUMAR) – PPGS/UFPE, 2019a. p. 01-05

SALVE MARACAÍPE. Relatório sobre o derramamento de petróleo no litoral sul do Estado de Pernambuco (2019-2020). em preparação.

SEVS. Intoxicações exógenas relacionadas à exposição ao petróleo no litoral de Pernambuco. Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde: Informe 06/2019. 2019.

SOARES, M. O.; TEIXEIRA, C. E. P.; BEZERRA, L. E. A.; PAIVA, S. V.; TAVARES, T. C. L.; GARCIA, T. M.; ARAÚJO, J. T.; CAMPOS, C. C.; FERREIRA, S. M. C.; MATTHEWS-CASCON, H.; FROTA, A.; MONT’ALVERNE, T. C. F.; SILVA, S. T.; RABELO, E. F.; BARROSO, C. X.; FREITAS, J. E. P.; MELO JÚNIOR, M.; CAMPELO, R. P. S.; SANTANA, C. S.; CARNEIRO, P. B. M.; MEIRELLES, A. J. SANTOS. B. A.; OLIVEIRA, A. H. B.; HORTA, P.; CAVALCANTE, R. M. Oil spill in south atlantic (Brazil): environmental and governmental disaster. Marine Policy, n. 115, 103879. 2020a. doi:10.1016/j.marpol.2020.103879.

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