Autores: Enaile do Espírito Santo Iadanza¹; Marcela Dálete de Moraes Santos²
Em dezembro de 2019, cerca de 40 estudantes, professores e técnicos da UnB, participantes da Vivência Amazônica³, puderam conhecer a realidade das comunidades quilombolas Mamuna e Canelatiua, no município de Alcântara, estado do Maranhão, articuladas pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE). Ambas se localizam no litoral do município, na primeira vivem 80 famílias e na segunda 67 famílias. O município de Alcântara possui mais de 200 comunidades quilombolas, que se instalaram na região no período colonial. Especialmente a partir de meados do século XVIII, o tráfico de homens e mulheres escravizados provenientes da África teve um impulso, eram considerados a mais importante “mercadoria” da época. Um estudo antropológico, realizado por Almeida (2006), mostra que foram essas populações que se estabeleceram na região, principalmente a partir da decadência econômica de Alcântara.
Não são recentes os debates relacionados às comunidades quilombolas do município de Alcântara e o Centro de Lançamento de Alcântara, administrado pela Aeronáutica. Desde a década de 1980, por ocasião da instalação deste Centro que se trava uma dura batalha. Os quilombolas buscando a permanência em seu território ancestral e a Aeronáutica tentando a remoção das comunidades, em busca de novos espaços para sua expansão (SOUZA FILHO e ANDRADE, 2020).
Foram mais de 300 famílias desapropriadas de 1986 a 1988 e instaladas em agrovilas construídas pela Aeronáutica (LOPES, 2016). Esse deslocamento proporcionou uma alteração no modo de vida dessas populações, que viviam da pesca, da agricultura e do extrativismo, com impactos sem precedentes em seus costumes e práticas. A experiência das populações nas agrovilas criou uma enorme insegurança nas demais comunidades quilombolas que intensificaram a resistência à desapropriação de seus territórios de direito.
As comunidades compulsoriamente deslocadas para as agrovilas eram impedidas de acessar o mar e não tinham terra suficiente para o plantio, além de nos arredores das casas não haver uma grande presença de árvores frutíferas ou para sombreamento, causando um distanciamento da relação da população com a natureza. Assim, passaram a depender dos peixes fornecidos pelas comunidades vizinhas. Também suas moradias onde foram instalados nas agrovilas foram sorteadas, não respeitando as relações de vizinhança estabelecidas há séculos pelas gerações passadas. Eram ainda impedidos de visitar seus mortos no cemitério, por ser área desapropriada e cedida ao Centro de Lançamento. Mesmo as comunidades quilombolas que não foram deslocadas sofrem com o poder do Centro de Lançamento de Alcântara, segundo as conversas realizadas nas comunidades.
Tem uma grande luta. É uma guerra viva mesmo. E o que é o pior de tudo é que nós não estamos brigando com o latifúndio, com os fazendeiros… Estamos brigando com o Estado, com quem poderia nos proteger, nos dar apoio, nos ajudar, nos dar saúde, educação, infraestrutura, tudo! É esse que tá nos causando problema, esse é que tá nos tirando de onde nós moramos. E hoje eles mandam mais do que nós. O Centro de Lançamento manda mais dentro de Alcântara do que os próprios moradores, que são centenários! Eles chegam simplesmente e dizem um não! Vocês não podem! Pois é, infelizmente não podemos fazer nada. Nós não podemos tirar um pouquinho de areia aqui dentro porque se o Centro de Lançamento vê a gente tirar uma areia pra fazer a nossa própria casa, eles vão lá e embargam, mandam parar (moradora da comunidade de Mamuna).
Os quilombolas de Mamuna e Canelatiua são principalmente agricultores e pescadores. Produzem para sobrevivência e disponibilizam o excedente para o mercado, principalmente o pescado e a farinha de mandioca. Suas formas de produzir e se relacionar com a natureza são seculares. Conhecem a vegetação local de onde retiram produtos para subsistência, construções e lenha. Sem suas terras e acesso ao mar, mais indivíduos pertencentes a essas comunidades perderão seu meio de vida e uma parte importante de sua cultura e identidade.
Ao longo desses anos, a instabilidade continuou com ameaças de deslocar famílias das comunidades quilombolas para locais definidos pelo Centro de Lançamento com o propósito de ampliação de sua área, principalmente para fins comerciais. Entretanto, os membros das comunidades quilombolas se organizaram. Ao Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR-Alcântara), que já existia, se somaram o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA) e a Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), organizações que passaram a ter um papel importante na defesa das comunidades quilombolas (IPEA, 2018; SOUZA FILHO e ANDRADE, 2020).
As comunidades quilombolas de Alcântara, além da Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, que garantiu aos quilombolas o direito aos territórios de vida e trabalho, contam com um instrumento importante para sua defesa que é a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta Convenção, ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada pelo governo brasileiro em 2004, garante a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e tribais sob qualquer medida administrativa ou legislativa que os afete. Esses instrumentos têm sido utilizados amplamente para o enfrentamento jurídico e político dos movimentos em defesa dos territórios quilombolas.
Ainda assim, com esses instrumentos de amparo jurídico, durante a pandemia da COVID 19, o governo brasileiro emitiu a Resolução nº 11 de 27 de março de 2020, que impõe imediata remoção das comunidades quilombolas de Alcântara da área de interesse do Programa Espacial Brasileiro. Isto para assegurar a ampliação da área do Centro de Lançamento de Alcântara, a ser utilizado comercialmente, assegurando o cumprimento do Acordo de Salvaguarda Tecnológica, assinado entre Brasil e Estados Unidos em 2019, e aprovado pela Câmara dos Deputados no mesmo ano.
Esta resolução não levou em consideração nem a Constituição Federal, nem a Convenção 169 da OIT. O Ministério Público conseguiu que o governo federal se comprometesse a não tomar nenhuma medida definida pela resolução nº 11 enquanto durar a pandemia de COVID 19. O fato é que, caso a medida vá adiante, diversas comunidades quilombolas de Alcântara, entre elas as comunidades Mamuna e Canelatiua, serão desestruturadas social, econômica e culturalmente. Há que somar esforços para que essas comunidades permaneçam em seus territórios de forma definitiva, caso contrário o desastre não terá precedentes.
É como se fosse uma coisa que vem pra destruir completamente, é você deixar tudo pra trás, é como ter um filho arrancado da sua vida e ser levado pra qualquer lugar. Então é uma coisa que não sabemos, que não sei nem dizer, porque não tenho palavras que defina o quanto eu vou ser afetada saindo daqui (morador de Canelatiua).
Figura 1. Praia da comunidade quilombola Mamuna Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019
Figura 2. Praia da comunidade quilombola Canelatiua. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019
Figura 3. Moradoras e construções dentro da comunidade quilombola Mamuna. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019
Figura 4. Quintal de uma das propriedades dentro da comunidade quilombola Mamuna. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019
Referências:
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas de Alcântara e a base de lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico. Vol. 2, Brasília: MMA, 2006.
BRAGA, Yara Maria Rosendo de Oliveira. Território étnico: conflitos territoriais em Alcântara – Maranhão. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Universidade do Vale da Paraíba, São José dos Campos, São Paulo 2011.
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. O Centro de Lançamento de Alcântara: abertura para o mercado internacional de satélites e salvaguardas para a soberania nacional. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2018. 58 p. (Texto para discussão nº 2423).
LOPES, Danilo da Conceição Serejo. As territorialidades específicas como categoria de análise na construção do direito de propriedade das Comunidades Quilombolas de Alcântara. São Luís, 2016. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Ciência Política, Universidade Estadual do Maranhão, 2016. 94 pSOUZA FILHO, Benedito; ANDRADE, Maristela de Paula. A Dois Graus do Equador: o Estado brasileiro contra os quilombolas de Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2020. 307 p. Disponível em: <https://sigaa.ufma.br/sigaa/verProducao?idProducao=1319921&key=9c14db06b5973c5a550717c815ebb87f>. Acesso em: 21 de outubro de 2020.