Pesca no extremo Norte do Brasil: disputas de acesso às águas costeiras do Parque Nacional do Cabo Orange

Autores: Érica Antunes Jimenez¹, Roberta Sá Leitão Barboza²; Elizandra de Matos Cardoso³

Nas águas costeiras do extremo norte do Brasil existe um complexo quadro de conflitos e injustiças socioambientais formado por diferentes agentes sociais (pescadores do Oiapoque, pescadores do Pará, atravessadores, fábrica de gelo, IBAMA, ICMBio, indígenas e Guiana Francesa) em torno da pesca, a qual também envolve recursos pesqueiros transfronteiriços. Os conflitos se referem principalmente à atuação da frota pesqueira paraense na costa amapaense, em especial no município do Oiapoque (JIMENEZ et al., 2019). Neste caso, focaremos nas disputas relacionadas aos recursos pesqueiros entre pescadores do Pará e Amapá, que se desenrolam nas águas marinhas do Parque Nacional do Cabo Orange (PNCO).

O PNCO é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Assim, sua principal finalidade é a preservação dos recursos naturais, sendo permitido apenas o uso indireto e restritivo de seus recursos naturais (Brasil, 2000). Criado em 1980 (BRASIL, 1980), o Parque possui uma área de 619.000 ha e compreende um perímetro de 590 km, localizado no extremo norte do estado do Amapá, na fronteira com a Guiana Francesa, na foz do rio Oiapoque (Figura 1).
Abrange parte dos municípios de Calçoene e Oiapoque, no estado do Amapá (04° 35’ e 02° 48’ N e 51° 50’ e 51° 35’ O). Possui ainda uma faixa marinha de cerca de 200 km de extensão adentrando ao mar em 10 km (6 milhas) (IBAMA, 2007).

Os principais objetivos do PNCO, de acordo com seu Plano de Manejo são: preservar a faixa de manguezal do parque, berçário biótico frágil; proteger as áreas úmidas, e sua fauna associada; preservar áreas de contato entre a floresta ombrófila e ambientes costeiros; além de tornar o PNCO uma referência para o turismo de base comunitária em parques nacionais e promover atividades de educação ambiental para a comunidade de entorno do parque (ICMBio, 2010).
A implantação do PNCO ocasionou o processo de expropriação de grande parte dos moradores da vila do Taperebá, próximo à foz do rio Cassiporé. Esses moradores tiveram que se mudar para a sede do município de Oiapoque, constituindo um processo de marginalização dos pescadores artesanais, pois passaram a morar em casas palafitas à margem do rio, com péssimas condições higiênico-sanitárias, e em bairros violentos.

Figura 1 – Localização e limites do Parque Nacional do Cabo Orange, AP

Crespi, Laval e Sabinot (2015) apontam que essas dinâmicas migratórias resultaram em modificações da gestão do território marinho e terrestre, como a ausência das regras locais de controle ao acesso aos territórios pelos pescadores locais e o desenvolvimento de práticas predatórias. Esse processo aumentou a pressão sobre os recursos pesqueiros pelos pescadores de fora e provocou ainda mudanças de saberes e práticas pesqueiras entre os pescadores locais. Ademais, atualmente, uma grande quantidade de barcos oriundos do estado do Pará realiza pescarias em áreas proibidas, como a região da foz do rio Cassiporé, dentro das águas do território do PNCO, empregando grandes extensões de redes de pesca com tamanho de malha proibida, além de utilizarem barcos piolhos⁴, considerados ilegais na área.

Além de os pescadores do Oiapoque se sentirem prejudicados pela disputa com a frota pesqueira do Pará, apontam ainda conflito junto ao PNCO, uma vez que são proibidos de pescar dentro de seus limites. Todavia, a frota pesqueira do Oiapoque é predominantemente artesanal, composta principalmente por barcos de pequeno porte (BPP)5 (JIMENEZ et al., 2020a,b), não apresentando capacidade de ultrapassar a faixa marinha do PNCO. Acrescenta-se a esse contexto a ausência de fiscalização efetiva dos órgãos ambientais como ICMBio e IBAMA nas águas marinhas que fazem parte do PNCO, especialmente na área de atuação da frota pesqueira paraense. E ainda, o aumento na costa amazônica da demanda do subeproduto de alguns peixes (Sciaenidae e Ariidae), conhecido localmente como grude (bexiga natatória), em virtude de seu alto valor no mercado internacional do (JIMENEZ et al., 2020a; 2021).

Visando à atenuação de parte desses conflitos, o ICMBio e a Colônia de Pescadores de Oiapoque estão há 14 anos dialogando e negociando termos de compromisso para regularizar temporariamente a pesca de pequeno porte realizada pela frota pesqueira do Oiapoque no interior do PARNA até que uma solução definitiva seja estabelecida. O termo mais recente, formalizado em 2018 e renovado em 2020, tem validade até março de 2024. Este instrumento foi considerado por Cañete, Cañete e Santos (2015) como estratégia de manejo que atendia uma população de forma compensatória. Contudo, esta não é uma solução permanente, uma vez que os termos têm prazos de vigência determinados.

Como historicamente no Brasil a criação de áreas protegidas restritivas desconsiderou a existência de comunidades tradicionais vivendo e/ou utilizando os recursos naturais em questão, conflitos desse tipo são frequentes. Apesar de raro, é possível alterar os limites de unidades de conservação para criar um mosaico de áreas protegidas mais adequado à realidade. No caso da Estação Ecológica da Juréia/SP, unidade de conservação de proteção integral criada em 1977 por exemplo, o perímetro foi alterado em 2006 com a criação de novas áreas protegidas (Reservas de Desenvolvimento Sustentável Despraiado e Barra do Una, Parques Estaduais do Itinguçu e do Prelado, Refúgios Estaduais de Vida Silvestre das ilhas do Abrigo ou Guaraú e Guararitama).

O sistema passou a ser chamado e gerido como Mosaico de Unidades de Conservação da Juréia-Itatins (Lei Estadual No. 12.406, de 12 de dezembro de 2006. No caso do PNCO, a criação de uma Reserva Extrativista Marinha na área é uma das medidas defendidas pelos pescadores do Amapá, uma vez que em todo o litoral do Estado existem apenas Unidades de Conservação de proteção integral (Figura 2). Uma UC da categoria Uso Sustentável, cujo objetivo básico é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais, como a RESEX (BRASIL, 2000), garantiria o acesso definitivo aos territórios pesqueiros e poderia proteger a pesca artesanal local da crescente competição com a frota paraense (Crespi et al., 2015; Jiménez et al., 2019).

Desde os anos 2000 tem ocorrido mobilização por parte dos pescadores artesanais de vários municípios do Amapá através da Federação das Colônias de Pescadores e Aquicultores do Estado do Amapá (FEPAP), que passaram a contar com o apoio da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (CONFREM), de gestores do PNCO e pesquisadores de Universidades. Assim, foram realizadas várias reuniões, audiências públicas e encaminhamentos de solicitação de criação da RESEX marinha Cabaralzinho junto a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Amapá e Ministério do Meio Ambiente.

Durante o período de 2006 a 2015 houve uma readequação dos limites territoriais RESEX das propostas submetidas (Figura 3), no sentido de excluir a área dentro dos limites do PNCO. Em 2017 foi realizado um estudo de caracterização socioambiental dos municípios e comunidades da Zona Costeira do estado do Amapá, como subsídio para a criação da RESEX Marinha Cabralzinho (PINHEIRO et al., 2017), todavia, até o presente momento a RESEX ao longo do litoral do estado do Amapá ainda não foi decretada.. Este estudo traz algumas recomendações importantes, como a proposta de criação do Mosaico de Áreas Protegidas da Zona Costeira do Amapá, com objetivo de promover a gestão integrada da nova RESEX Marinha com o Parque Nacional Cabo Orange (PNCO), a Estação Ecológica de Maracajá-Jipioca (EEMJ), a Reserva Biológica do Lago Piratuba (RBLP), a Reserva Biológica do Parazinho (RBP) e as Terras Indígenas do Oiapoque (Uaçá, Galibi e Juminá) (Figura 4).

Figura 2- Mapa do litoral do Estado do Amapá com destaque para a presença de Unidades de Conservação de Proteção Integral.
Figura 3 – Mapas das propostas criação da RESEX no litoral do Estado do Amapá, com limites das áreas apresentadas em 2006 (à esquerda) e 2015 (à direita).(Fonte: Acervo ICMBIO; Pinheiro et al., 2017).
Figura 4- Proposta de Mosaico de Áreas Protegidas da Zona Costeira do Amapá, com destaque em vermelho para a RESEX Marinha Cabaralzinho proposta (Fonte: Pinheiro et al., 2017).

¹Universidade Federal do Pará, Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão Pesqueira de Comunidades Amazônicas. Av. Leandro Ribeiro, s/n, Aldeia. CEP: 68.600-000, Bragança, PA, Brasil. E-mail: ericaajimenez@gmail.com
²Universidade Federal do Pará, Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão Pesqueira de Comunidades Amazônicas. Av. Leandro Ribeiro, s/n, Aldeia. CEP: 68.600-000, Bragança, PA, Brasil. E-mail: robertasa@ufpa.br
³Universidade Federal do Amapá, Laboratório de Ecologia. Rod. JK, km 2, Jardim Marco Zero. CEP: 68.903-419, Macapá, AP, Brasil. E-mail: elizandra.matos@gmail.com
4Embarcações de pequeno porte transportadas por grandes embarcações industriais (JIMENEZ et al., 2019).
5Embarcação movida a motor ou motor e vela, com casco de madeira, convés fechado ou semifechado, com ou sem casaria, comprimento entre 8 e 11,99 m, conhecida vulgarmente como barco motorizado de pequeno porte (IBAMA/ESTATPESCA, 2006).

Referências

BRASIL, 1980. Decreto nº 84.913, de 15 de julho de 1980. Dispõe da criação do Parque Nacional do Cabo Orange.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. CAÑETE, U M. R.;

CAÑETE, V. R.; SANTOS, S. M. S. B. M. Pesca artesanal e manejo: conflito socioambiental em uma área de unidade de conservação do Parque Nacional do Cabo Orange, Oiapoque, Amapá. Novos Cadernos NAEA, 18(3): 179-198, 2015.

CRESPI, B., LAVAL, P. Y SABINOT, C. (2015). La communauté de pêcheurs de Taperebá (AmapáBrésil) face à la création du Parc national du Cabo Orange. Espace Populations Sociétés, 2014, 2-3. https://doi.org/10.4000/eps.5874

ICMBIO (INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE). Plano de Manejo do Parque Nacional do Cabo Orange. Brasília: ICMbio, 2010.

IBAMA (INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS). Plano operativo de prevenção e combate aos incêndios do Parque Nacional do Cabo Orange – AP. Brasília: IBAMA, 2007. 28 p.

JIMENEZ, É. A., BARBOZA, R. S. L., AMARAL, M. T. Y LUCENA FRÉDOU, F. (2019). Understanding changes to fish stock abundance and associated conflicts: Perceptions of small-scale fishers from the Amazon coast of Brazil. Ocean & Coastal Management, 182(104954), 1-12. https://doi.org/10.1016/j.ocecoaman.2019.104954

JIMENEZ, É. A., AMARAL, M. T., SOUZA, P. L. D., FERREIRA COSTA, M. D. N., LIRA, A. S. Y FRÉDOU, F. L. (2020a). Value chain dynamics and the socioeconomic drivers of small-scale fisheries on the amazon coast: A case study in the state of Amapá, Brazil. Marine Policy, 115(103856), 1-11. https://doi.org/10.1016/j.marpol.2020.103856

JIMENEZ, L. A., JIMENEZ, É. A., GARCIA, J. S., BARBOZA, R. S. L. Y SILVA, L. M. A. (2020b). A pesca artesanal em Oiapoque (Amapá): Bases para o manejo sustentável dos recursos pesqueiros. En M. E. D. Silva (Ed.), Padrões ambientais emergentes e sustentabilidade dos sistemas 2 (pp. 315– 328). Atena Editora. DOI 10.22533/at.ed.47120051126

JIMENEZ, É. A., BARBOZA, R. S. L., GARCIA, J. S., CORREA, E. C. S., AMARAL, M. T. Y LUCENA FRÉDOU, F. International trade of Amazon fish byproducts: Threats and opportunities for coastal livelihoods, Ocean & Coastal Management,v. 212, 2021,