Pesca artesanal e pesca industrial em conflito: um caso no litoral de Bragança, Pará

Autores: Josinaldo Reis do Nascimento¹; Roberta Sá Leitão Barboza²; Elizeu Ferreira Assis³; Lol Iana Dahlet4

Ao longo do litoral da Amazônia brasileira, vem-se formando nas duas últimas décadas uma extensa rede de Reservas Extrativistas (RESEX) marinhas (NASCIMENTO, 2021). Atualmente, contam-se 17 RESEX Marinhas, somando cerca de 867.177,80 hectares de áreas protegidas localizadas entre Soure, no arquipélago do Marajó (estado do Pará), e a zona costeira/estuarina dos municípios de Humberto de Campos e Icatu no estado do Maranhão. Estas, por sua vez, agregam e institucionalizam os maretórios, ou espaços costeiros/estuarinos de uso coletivo de extrema relevância para garantir a soberania alimentar das populações que neles vivem tradicionalmente a sucessivas gerações (NASCIMENTO; BARBOZA, 2020; NASCIMENTO, 2021).

O Estado do Pará abrange 12 RESEX marinhas (Figura 13), incluindo a RESEX Marinha CaetéTaperaçu, localizada no município Bragança, no nordeste do Estado do Pará. O conflito que abordaremos ocorre em várias áreas do litoral paraense, contudo, este caso inclui informações coletadas junto a pescadores da vila dos Pescadores de Ajuruteua (00°51’07.0”S, 046°36’02.5”W) situada na Resex Marinha Caeté-Taperaçu. Além disso, um dos autores desse estudo é morador e pescador desta comunidade.

Figura 1- Reservas extrativistas marinhas no Estado do Pará (Fonte: Nascimento, 2021, p. 28).

As alterações de base técnica e tecnológica (e.g. a introdução de novos petrechos de pesca, barcos maiores e com maior autonomia, uso de equipamentos tecnológicos como sonares, GPS) contribuíram para a inserção de novas formas de ocupação dos espaços costeiros. Estes e demais processos socioeconômicos, incluindo os fluxos migratórios, sobretudo de pescadores oriundos de cidades do litoral do Nordeste brasileiro, acarretaram importantes processos de mudanças sociais, econômicas, demográficas e ecológicas no litoral paraense. Houve também um aumento da pressão sobre os estoques pesqueiros do litoral norte do país, contribuindo para uma pesca não sustentável (ISAAC-NAHUM, 2006). Isto tem desencadeado diversos conflitos socioambientais relativos aos usos dos espaços costeiros e exploração de seus recursos naturais.

Um dos principais conflitos que decorre deste contexto ocorre entre os pescadores artesanais de Arujuteua (e ainda de outros municípios e RESEX marinhas do Pará) e a frota pesqueira industrial de arrasto de fundo5, em torno da extração de pescada gó (Macrodon ancylodon). A pescada gó é principalmente capturada por rede gozeira (40mmx40mm) pela frota artesanal, e por rede de arrasto pela frota industrial. Esta é uma pescaria de alto mar, que, no caso da pescaria artesanal, varia de cinco a seis dias, sendo as embarcações utilizadas de médio porte, motorizadas com carga de armazenamento de duas a três toneladas.
No entanto, do ponto de vista dos pescadores artesanais, a frota industrial está esgotando o estoque de pescada gó.

O conflito em questão apresenta, por um lado, um cunho tecnológico. Ao fazer uso de sonar com motores potentes, as embarcações da frota industrial apresentam maior autonomia de pesca, capturando quantidades expressivas em um curto espaço de tempo. Isto tem repercussões negativas para além dos pesqueiros investidos pela frota industrial, a exemplo da vila dos Pescadores de Ajuruteua. Nesta comunidade, verifica-se um declínio da produtividade da pesca artesanal. Os pescadores artesanais atuam em uma pescaria sazonal, entre os meses de janeiro/fevereiro a julho, quando, em geral, as principais espécies pesqueiras se aproximam da costa, enquanto a frota industrial atua durante o ano todo, próximo à costa ou em águas mais distantes. Por fim, o conflito também é de ordem territorial.

De modo geral, essa pesca de arrasto vem sendo exercida nos limites e/ou na área do entorno6 das RESEX, afetando diretamente a produtividade da pesca artesanal. Além disso, as embarcações industriais são acusadas de intimidar ativamente os pescadores artesanais, limitando os locais onde estes podem pescar. Ao serem ultrapassados estes limites, passa a haver prejuízos materiais oriundos do encontro de artes de pesca.

Pesquisadores (SILVA; SILVA; CINTRA, 2014) apontaram em 2013 que 162 embarcações industriais possuíam licença para a captura de “peixes diversos” com rede de arrasto de fundo na plataforma continental amazônica, sendo que:

Pela proximidade de atuação da frota industrial permissionada para peixes diversos, com áreas de atuação da pesca artesanal costeira, o estudo sugere uma avaliação dos impactos sociais, econômicos e biológicos em atividades tradicionais de pesca (curral de pesca[9], pesca de emalhe, pesca de espinhel e pesca de linha e etc.) realizadas por muitas comunidades ao longo de várias cidades e vilarejos da microrregião do Salgado paraense.

Vale ressaltar que os peixes chamados de “diversos” pela IN n° 2/2010 são as principais espécies-alvo da pesca artesanal, de importância fundamental para a segurança alimentar e econômica das comunidades de pescadores artesanais dessa faixa litorânea. No relato abaixo, um pescador da RESEX Marinha Caeté-Taperaçu aponta os impactos da pesca de arrasto industrial sobre a pesca artesanal de curral7:

[…] eles liberaram pra gó nesta época aí do defeso do pargo, do camarão. Ai… ninguém mata nada aqui no curral. Antes… na safra era cheio, aí… bem aí mesmo na pancada. Agora… hum… só passa o que os homi não pega. Eles têm GPS, sonar e vão atrás do peixe lá fora, nós fica aqui esperando a maré trazer… tá difícil sô. O curral pode acabar, né? Tanto pela falta de peixe, quanto que como eu já disse… tá ficando cada vez mais pequeno, tem essa questão dos barco, né… que faz arrasto aí em cima, e pega de tudo, do grande ao pequeno; eles vão levando tudo. Se fiscalizasse, mas acho difícil8.

Conforme apontado pelo pescador acima, e ainda por lideranças do movimento social de pescadores artesanais e pela literatura científica (ALENCAR et al., 2022), o poder de captura da frota industrial tem impactado a autonomia da pesca artesanal, promovendo a redução dos estoques pesqueiros e dificuldades de acesso aos territórios pesqueiros tradicionais. A situação tem se tornado ainda mais complexa na medida em que pescadores artesanais tem atuado na pesca industrial, como agentes intermediários na comercialização ou uso das pequenas embarcações como acessórias da frota industrial, conhecidas como barcos piolhos (ALENCAR et al., 2022; JIMENEZ et al., 2019).
Destacamos nessa discussão que em muitas RESEX os limites territoriais delimitados muitas vezes não incluem os espaços aquáticos de uso comum de seus usuários e desconsideram os acordos de pesca locais.

De forma geral, o Estado brasileiro, tanto a nível federal, estadual, como municipal, pouco tem se esforçado em propor medidas para resolução desses conflitos. Alencar et al. (2022) apontam que a falta de políticas públicas direcionadas aos pescadores artesanais da costa e estuário paraense e a inabilidade do estado em promover o manejo pesqueiro da região, tem acentuado a precariedade das condições de trabalho e a vulnerabilidade que estes pescadores enfrentam.

Nesse sentido, é fundamental que medidas de manejo da pesca que considerem os acordos locais, os saberes e as práticas tradicionais, sejam adotadas na região. Bem como políticas de promoção da melhoria da qualidade de vida de pescadores e pescadoras artesanais, a fim de reduzir os conflitos e as injustiças sofridas por essas populações há décadas.


¹Biólogo, doutor em Geografia Humana (PPGH/USP), docente de Extensão Pesqueira do IFPA Campus Bragança, membro dos Grupos de Pesquisa: Educação, Trabalho, Tecnologia, Humanidades e Organização Social (ETTHOS/IFPA) e Estudos Socioambientais Costeiros (ESAC/UFPA). e-mail: josinaldo.reis@ifpa.edu.br
²Bióloga, doutora em Ecologia Aquática e Pesca (UFPA), docente da Faculdade de Engenharia de Pesca e dos Programas de Pósgraduação em Linguagens e Saberes da Amazônia (UFPA Campus Bragança) e em Estudos Antrópicos na Amazônia (UFPA Campus Castanhal), Coordenadora do grupo de Pesquisa ESAC e do LABPEXCA/UFPA (Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão Pesqueira de Comunidades amazônicas). robertasa@ufpa.br
³Pescador da Vila dos Pescadores em Ajuruteua, graduando em Biologia pela Universidade Federal do Pará/Campus Bragança e membro do LABPEXCA/UFPA.
4Doutoranda (Centro Leibniz de Pesquisa Marinha Tropical – ZMT-Universidade de Bremen, Alemanha) e pesquisadora do LABPEXCA/UFPA.
5A Instrução Normativa nº 2, de 15 de janeiro de 2010, em seu Art. 1º define arrasto de fundo como: II – Método de pesca: arrasto de fundo com portas, sem correntes na tralha inferior, com malhas de tamanho mínimo de 100 mm no corpo da rede e 70 mm no túnel de saco, medidas tomadas entre nós opostos da malha esticada (BRASIL, 2010).
6Zona de amortecimento, ou de entorno, é definida no Art. 2° da Lei n° 9.985/2000 como: “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos contra a unidade”.
7Armadilhas fixas usadas na pesca artesanal confeccionadas com madeiras extraídas do manguezal, de tal modo que suas estruturas direcionam os peixes para o interior da mesma onde ficam aprisionados e posteriormente são capturados (NASCIMENTO et al., 2016).
8Pescador artesanal 01. Entrevista concedida em 28/05/2019, Bragança-PA.

Referências

ALENCAR, Edna Ferreira; CELESTINO, Edemir Amanajás; ABREU, Adriana Guimaraes. Social Conflicts and Fishery Governance Systems in the Estuary and Coast of Pará, Amazonia, Brazil. In: JENTOFT, Svein; CHUENPAGDEE, Ratana; BUGEJA-SAID, Alicia; ISAACS, Moenieba (Eds.). Blue Justice Small-Scale Fisheries in a Sustainable Ocean Economy. Switzerland: Springer, 2022. p.233-247.

BRASIL. Instrução Normativa Interministerial MPA/MMA Nº 2, de 15 de janeiro de 2010. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, DF, Coleção de Leis do Brasil, 18/01/2010. Disponível em: www.normasbrasil.com.br/norma/instrucao-normativa-interministerial-2-2010_77749.html. Acesso em: 02 janeiro 2022.

ISAAC-NAHUM, Victoria Judith. Explotação e manejo dos recursos pesqueiros do litoral amazônico: um desafio para o futuro. Ciência e Cultura, v. 58, n. 3, p. 33-36, 2006.

JIMENEZ, Érica Antunes., BARBOZA, Roberta Sá Leitão., AMARAL, Marilu Texeira., LUCENA FRÉDOU, Flávia. Understanding changes to fish stock abundance and associated conflicts: Perceptions of small-scale fishers from the Amazon coast of Brazil. Ocean & Coastal Management, 182(104954), 1-12, 2019. https://doi.org/10.1016/j.ocecoaman.2019.10

NASCIMENTO, Josinaldo Reis. Nos maretórios da Amazônia: os desafios da gestão compartilhada nas Reservas Extrativistas Marinhas do nordeste do estado do Pará. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo- USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-FFLCH/, São Paulo-SP, 2021.

NASCIMENTO, Josinaldo Reis; BARBOZA, Roberta Sá Leitão. Dos seringais aos Maretórios: RExistências nas RESEX Marinhas da Amazônia. In: TEISSERENC, Pierre; TEISSERENC, Maria José da Silva Aquino; ROCHA, Gilberto de Miranda (Orgs.). Gestão da água: desafios sociopolíticos e sociotécnicos na Amazônia e no Nordeste brasileiros. Editora NUMA/ UFPA, Belém-PA, p. 234- 265, 2020.

NASCIMENTO, Josinaldo Reis; DIAS, Eliza de Cássia Sousa Dias; SOUZA, Terezinha de Jesus Lima de Souza; CARDOSO, Sergio Ricardo Pereira Cardoso; BARBOZA, Roberta Sá Leitão. Técnicas e saberes imbricados na arte da pesca de curral em uma Reserva Extrativista Marinha da Amazônia. Nova Revista Amazônica, v.4, n.2, 2016.

MANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua, uma comunidade pesqueira ameaçada. Editora Universitária UFPA, 1995, 167p.

SILVA, Lins Erik Oliveira; SILVA, Kátia Cristina de Araújo; CINTRA, Israel Hidenburgo Aniceto. Sobre a pesca industrial para peixes diversos na plataforma continental amazônica. Revista Brasileira de Engenharia de Pesca, v. 7, n. 2, p. 34-53, 2014.