O conflito socioambiental envolvendo o Complexo Industrial-Portuário de Pontal do Paraná (PR): o caso da Comunidade do Maciel

Autor: Natália Tavares de Azevedo¹

O litoral do Paraná, juntamente com o litoral sul de São Paulo, possui o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica da costa brasileira, abrigando quase todo tipo de ecossistemas marinhos do país, com grande diversidade biológica e relevantes funções ecológicas (SCHEFFER DA SILVA et al., 2016). Apesar de pouco extensa, com cerca de 100 km de linha de costa, possui duas áreas estuarinas, a Baía de Guaratuba (48,7 km2) ao sul e o Complexo Estuarino de Paranaguá (CEP) (667 km2) ao norte, que somam mais de 1300km de costa estuarina (PIERRI et al, 2006), com mais de 31 mil hectares áreas de manguezais (ITCG, 2016). O Complexo Estuarino de Paranaguá (CEP) é marcado por usos diversos, que muitas vezes se mostram conflituosos (PIERRI et al, 2006). Sua porção sul, que abrange os municípios de Antonina, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná, é marcada pelos usos portuários, com destaque para o Porto de Paranaguá. Por outro lado, sua porção norte, que em sua quase totalidade é composta pelo município de Guaraqueçaba, é alvo, desde a década de 1980, de políticas de conservação da natureza, sendo quase integralmente inserida em unidades de conservação de distintas categorias.

Destacam-se ainda a existência da atividade turística e a produção agrícola. A ocupação da região inclui áreas de alta densidade demográfica, como na área urbana de Paranaguá, e outras de baixíssima densidade, como nas áreas rurais de Antonina e Guaraqueçaba. No total, os cinco municípios que compõem a CEP possuem cerca de 203 mil habitantes, segundo dados do censo de 2010. Entre essas duas formas preponderantes de produção do espaço, encontra-se uma significativa quantidade de comunidades pesqueiras. Segundo estimativas, há cerca de 60 localidades ou comunidades pesqueiras na CEP, envolvendo cerca de 3000 pescadores artesanais (ANDRIGUETTO FILHO, 1999; MAFRA, 2018), com grande diversidade de práticas. Essas comunidades estão envolvidas em distintos tipos de conflitos, e se vêem ora pressionadas pelo avanço dos empreendimentos portuários e de infraestrutura e logística associados, ora limitados e até mesmo criminalizadas em suas práticas produtivas por legislações e políticas ambientais que desconsideram seus usos tradicionais e territorialidades (MAFRA, 2018), configurando-se em injustiças socioambientais diversas.

Nesse contexto, destaca-se o conflito que envolve a comunidade tradicional pesqueira do Maciel. Localizada no município de Pontal do Paraná (pertencente à Paranaguá até 1997), próximo à porção sul da desembocadura da CEP. Conforme distintas fontes, particularmente cotejadas na Informação Técnica no 219.16-CPC/SEEC (SEEC, 2016), a ocupação da Vila do Maciel é muito antiga, aparecendo a menção a esta comunidade pela primeira vez nos registros de Antônio Vieira dos Santos no início do século XIX (SANTOS, 1950). Atualmente, a comunidade é composta por cerca de 40 famílias (TANNO, 2009; ONOFRE, 2018), distribuídas ao longo dos caminhos que percorrem a comunidade, que só é acessada pela via marítima ou por trilhas. Desenvolvem a pesca artesanal tanto no estuário quanto na plataforma continental, com uma diversidade de práticas, que inclui captura de moluscos e crustáceos, pesca de lanço, fundeio e espinhel, além de arrasto de camarão, com o uso de canoas motorizadas (ANDRIGUETTO FILHO, 1999). Historicamente, também desenvolviam agricultura, atividade que ficou restrita devido às perdas territoriais que a comunidade passou a sofrer a partir da década de 1950. Nas figuras 08 e 09 se pode observar aspectos da comunidade.

Figuras 1 e 2- Comunidade do Maciel vista da Baía Fonte: Bachstein, 2015. Embarcações Pesqueiras em rancho na Comunidade do Maciel. Fonte: Cherem, 2016.

Foi a partir desse período que a comunidade foi inserida em um conflito fundiário, mediante a doação de terras por parte do Governo do Estado do Paraná e da Prefeitura de Paranaguá à Empresa Balneária Pontal do Sul (CUNHA, 2018; CORBARI, 2020). Foram quase 5 mil hectares de terras doados, na qual se insere a área da comunidade. Embora o decreto previsse o reconhecimento e regularização das posses existentes, tal ação nunca foi realizada, gerando conflitos que se estendem até os dias atuais (CUNHA, 2018). Nesse cenário, observa-se inclusive ações violentas e ameaças contra as comunidades em toda a área compreendida por essas terras, no município de Pontal do Paraná (SILVA, 2015). Uma nova fase desse conflito se estabelece com o surgimento de um projeto de construção de um terminal portuário privado, que foi viabilizado pela alteração no marco legal do setor portuário em 1993 (BRASIL, 1993). Em 1996, a Empresa Balneária Pontal do Sul fundou a Porto Pontal do Paraná Importação e Exportação LTDA e deu início aos trâmites para a implantação do terminal na localidade conhecida como Ponta do Poço, próxima à Comunidade do Maciel. Cabe destacar que na localidade da Ponta do Poço também existia uma comunidade pesqueira tradicional, com 16 famílias, que acabaram sendo realocadas para a Vila dos Pescadores, próximo ao Canal do DNOS existente em Pontal do Sul, conforme relatado no próprio Estudo de Impacto Ambiental do Empreendimento, disponível na página do IBAMA (AMB, 2008;MAFRA, 2018).

Apenas em 2005 tem início o processo de licenciamento ambiental junto ao IBAMA. Nesse ínterim, outros empreendimentos ligados ao setor industrial e portuário também passaram a ser projetados e iniciados processos de licenciamento na localidade. Em 2010, o IBAMA condicionou o licenciamento do Porto Pontal à construção de uma nova via de acesso à região da Ponta do Poço, tendo em vista a precariedade da rodovia atual. A partir de então, passa a ser projetada uma Faixa de Infraestrutura, contando não apenas com a rodovia, mas com gasoduto, ferrovia, canal de drenagem e rede de alta tensão (CORBARI, 2020; ONOFRE, 2021). Dessa forma, mais do que a implantação de um terminal portuário, trata-se da formação de um novo complexo industrial-portuário, com impactos cumulativos e sinérgicos que não foram considerados em nenhum dos EIA ou mesmo em instrumentos de planejamento (ONOFRE, 2021). A figura 10 apresenta o cenário de conflito entre a comunidade e os empreendimentos, além de destacar a presença de unidades de conservação integral nas proximidades da localidade onde se pretende instalar o conjunto dos empreendimentos que formarão o Complexo Industrial Portuário de Pontal do Paraná.

Figura 3 – Mapa do cenário do conflito socioambiental referente ao Complexo Industrial Portuário de Pontal do Paraná. FONTE: CORBARI, 2020.

Vale salientar que o Porto de Paranaguá é um dos principais portos graneleiros do país, ligado à cadeia de commodities da soja. Diante da intensificação das cadeias globais de valor ocorrida nos últimos 50 anos e, particularmente, da importância que o processo de circulação de mercadorias ganha na atual fase da geografia histórica do capitalismo (HARVEY, 2004), a expansão da infraestrutura de logística se torna fundamental a países exportadores de commodities primárias como o Brasil. A intensificação da atividade portuária no litoral paranaense não se limita à criação de um novo polo em Pontal do Paraná, mas contempla também a expansão do Porto de Paranaguá e a criação de novas portuárias em locais que ainda não são ocupados pelo porto, como a região do Embocuí. Os potenciais conflitos com comunidades pesqueiras, indígenas e com as unidades de conservação existentes têm sido desconsiderados, de forma geral, pelo poder público, que engendra esforços para viabilizar esses projetos – em sua grande maioria, privados.

Desse modo, merece destaque os esforços por parte dos governos estadual e municipal para viabilizar os empreendimentos, para o que foram realizadas diversas alterações nas normas de ordenamento territorial que incidem na região. O Plano Diretor de Pontal do Paraná foi alterado em 2014, ampliando substantivamente a área destinada à Zona Especial Portuária (CUNHA, 2018; CALDEIRA, 2018). Nessa alteração, o que na versão de 2007 aparecia como Setor Especial do Maciel foi excluído e incorporado à ZEP. Em 2016, foi publicado o Zoneamento Ecológico Econômico do Litoral, via Decreto no. 4996, enquadrando a ZEP como uma Zona de Desenvolvimento Diferenciado, que prevê a instalação de empreendimentos portuários e industriais. Ao mesmo tempo, a presença das comunidades pesqueiras na região não é considerada pelo ZEE.

Figura 4 – Faixa com reivindicação de participação das comunidades pesqueiras no Plano Diretor de Pontal do Paraná. Audiência realizada na Comunidade do Maciel em 06 de dezembro de 2016. Fonte: A autora, 2016.

Ainda, na esfera municipal, a prefeitura de Pontal do Paraná promulgou o Decreto no. 5532/2016, estabelecendo normas para a emissão dos alvarás de construção na Zona Especial Portuária, com a realização de Estudos de Impactos de Vizinhança (EIV). Segundo o Decreto, caso sejam identificados impactos socioeconômicos, o empreendedor deverá realocar as famílias impactadas (CUNHA, 2018). Existe, de modo bastante evidente, um projeto de desterritorializar as comunidades pesqueiras existentes na área prevista para o novo polo industrial-portuário de Pontal do Paraná.

Esses processos não se dão sem resistências. A Comunidade do Maciel tem buscado apoio junto ao Ministério Público Estadual, bem como a pesquisadores das universidades atuantes na região. Há processos de judicialização em curso, tanto no que se refere aos processos de licenciamento dos empreendimentos e da faixa de infraestrutura quanto em relação às alterações nos instrumentos de ordenamento territorial, feitas sem a devida participação das comunidades, que reivindicaram seus direitos de participação, conforme se pode observar na figura 12 (MAFRA, 2018; CORBARI, 2020). Ações de usucapião também são estratégias utilizadas como forma de reconhecimento do direito à terra, como se observa na figura 05. A comunidade buscou ainda, junto à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), com apoio de pesquisadores, reconhecer seu território por meio de um Termo de Autorização de Usos Sustentável (TAUS) (ONOFRE, 2018), encaminhado em 2018 e até o momento sem retorno.

Figura 5 – Placa que anuncia o direito à terra pelo usucapião de um morador da Comunidade do Maciel.

Tal cenário pode ser compreendido como um caso em que se aplica o conceito de injustiça ambiental. Num cenário de capitalismo liberalizado, com as reformas implementadas nos sistemas políticos nas últimas décadas, há uma distribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimento econômico, recaindo sobre os grupos sociais despossuídos os danos, enquanto os benefícios se concentram aos grandes interesses econômicos (ACSELRAD et al, 2012).


¹Universidade Federal do Paraná (UFPR) (natytav@yahoo.com.br)

Referências

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