Impacto socioambiental na Praia do João Paulo, Florianópolis (SC)

Autores: Carmen Sílvia Moreira Garcez¹

O Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi (PMMI) situa-se na região centro-oeste da Ilha de Santa Catarina, no município de Florianópolis (SC), na foz da Bacia do Itacorubi, com pequena parte ao Norte na Bacia Florianópolis (Figura 1). O parque está localizado integralmente no Manguezal do Itacorubi, caracterizado como Área de Preservação
Permanente (APP) conforme a Resolução CONAMA no 303/02, o Plano Diretor Municipal e o Código Florestal².

Figura 1 – Localização do Manguezal do Itacorubi, do PMMI e sua Zona de Amortecimento (3 km), Florianópolis, SC. Fonte: Jeremias (2020)/Esri-Satélite (2020)/IBGE (2020).

O PMMI abrange 193,39 hectares de área territorial e foi criado em 8 de julho de 2002, por meio do Decreto Municipal nº 1.529/02, como compensação ambiental devido à construção de um elevado em importante avenida central da cidade. Contudo, sua implantação como Unidade de Conservação (UC) ocorreu sem a devida atenção à legislação federal e em área pertencente à União cedida à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pelo Decreto Federal nº 64.340/1969, visando a preservação e conservação do manguezal.
Atualmente, o parque passa por discussões para se adequar ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e possivelmente deve assumir a categoria Parque Natural (OBSERVA, 2018). Trata-se da única UC municipal de Florianópolis que ainda não passou pelo processo de recategorização e, por essa razão, carece de documentos oficiais, não possuindo zoneamento nem plano de manejo (JEREMIAS, 2020).
Ao longo do tempo, o Manguezal do Itacorubi sofreu diversos impactos devido ao processo de urbanização que se acentuou na capital catarinense a partir dos anos 1950. Ao seu redor foram instalados cemitérios e lixões, e parte foi aterrada para a construção de rodovias e loteamentos. Na atualidade, na Bacia Hidrográfica do Itacorubi habitam mais de 60.000 moradores e outras 100.000 transitam por suas avenidas em deslocamentos diários em busca de serviços e instituições públicas localizadas nessa parte da cidade (FLORIANÓPOLIS, 2019).

Figura 2 – Destaque do Manguezal do Itacorubi em meio à área urbana. Fonte: Acervo Observa (OBSERVA, 2018).

O caso abordado aqui diz respeito ao impacto socioambiental na Praia do João Paulo, localizada na Zona de Amortecimento do Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi. Conforme a Lei Federal nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que instituiu o SNUC, entende-se por Zona de Amortecimento “o entorno de uma unidade de conservação, onde a s atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”.

Desse modo, torna-se imperativo dar visibilidade aos conflitos socioambientais no entorno do parque, em especial aqueles decorrentes de atividades poluidoras que colocam em risco tanto a condição ambiental local como a saúde e o modo de vida da comunidade tradicional da pesca artesanal. A Praia do João Paulo localiza-se no bairro de mesmo nome da capital catarinense, no limite Norte da Ponta do Goulart (Figura 3). Pela Lei Municipal Complementar nº 203, de 8 de dezembro de 2005, a Ponta do Goulart foi transformada em Área de Preservação Permanente (APP).


Figura 3 – Localização da Praia do João Paulo. Fonte: Prefeitura Municipal de Florianópolis (CRUZ, 2019).

Conforme consta na Lei Municipal n. 5.847, de 4 de junho de 2001, que criou a denominação oficial das praias de Florianópolis, a Praia do João Paulo tem 550 m de extensão e largura de até 15 m. Trata-se de uma praia de mar interno da baía, a Baía Norte, e sua faixa de areia é constituída por areia acinzentada, de textura média, que as marés altas cobrem por completo. O bairro João Paulo abriga a maior comunidade de pescadores das baías da Ilha de Santa Catarina, liderada pela Associação dos Pescadores Profissionais, Artesanais e Amadores da Praia do João Paulo e Saco Grande (APPAAJOP), contando com 102 famílias que vivem da pesca³.

A pesca na área é feita com barcos de pequeno porte e, devido a uma antiga demanda da comunidade, a Prefeitura Municipal de Florianópolis construiu ali um trapiche para facilitar o atracamento das embarcações. A obra, realizada pela Secretaria Municipal de Infraestrutura e entregue à comunidade em 2021, tem 210 metros de extensão, dos quais os 70 metros finais são de acesso exclusivo aos pescadores. Historicamente, existe na enseada a deposição de lama oriunda dos mangues e despejada pelos rios do sistema, mas desde a construção da Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) João Paulo/Saco Grande, em 2006, os moradores locais relatam um aumento da espessura da lama, além do mau cheiro⁴ .

Em março de 2021, depois que a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) anunciou as obras de ampliação da estrutura da ETE, a comunidade do bairro, liderada pela APPAAJOP, protocolou no Ministério Público Federal uma representação para instaurar um inquérito civil para investigar o impacto ambiental da estação de tratamento e pedir a paralisação das obras, que já estavam suprimindo a vegetação para a terraplenagem.
A representação protocolada afirma que a instalação da ETE João Paulo/Saco Grande ocorrida há 16 anos já trouxe prejuízos ambientais imensuráveis por comprometer a atividade profissional dos pescadores. O documento também afirma, com base em um relatório de fiscalização da Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Santa Catarina (ARESC) de 2013, que “a ETE Saco Grande possui a saída de sólidos sedimentáveis acima dos valores previstos legalmente” e que os “sólidos sedimentáveis são considerados indicadores de poluição”.

De acordo com o relatório da ARESC mencionado, na ETE Saco Grande os sólidos sedimentáveis encontrados naquele ano (1,3 mL/L) estavam em desacordo com a Resolução CONAMA 430, que prevê um limite de 1 mL/L⁴ . O documento protocolado cita ainda outro relatório da ARESC, publicado em 2019⁵, que apontava irregularidades na estação de tratamento tais como “ausência de adequadas condições de limpeza, conservação, manutenção e/ou segurança”.

Ademais, houve falhas no processo burocrático de execução da obra, como a falta de um Estudo de Impacto de Vizinhança e ausência de transparência sobre o Estudo de Impacto Ambiental da ampliação da ETE para com a comunidade local da pesca artesanal⁶. De acordo com a Nota Técnica n. 05/PES/2021 da Universidade Federal de Santa Catarina, um Estudo Ambiental Simplificado (EAS) desenvolvido em 2006 para a instalação original da ETE indicava que o emissário submarino da disposição final do efluente tratado adentra 800 m na enseada de João Paulo, “com significativa capacidade de diluição pela maré” (UFSC, 2021, p. 2). Contudo, o estudo não apresentava nenhuma modelagem que indicasse a pluma de dispersão do efluente na enseada, tampouco a capacidade real de diluição do corpo receptor. O EAS também afirmava que, na área no entorno do emissário submarino, não era “praticada pesca profissional ou navegação de lazer devido à grande espessura de lodo do fundo” – o que contradiz a realidade concreta da área, pois essa enseada é historicamente utilizada pela comunidade local, em especial pelos pescadores artesanais.

O estudo mais atual da hidrodinâmica das baías da Ilha de Santa Catarina foi realizado por Czizeweski (2016), conforme indicado na mesma nota técnica da UFSC, no qual seu autor afirma que “as correntes de água são muito fracas ao largo da enseada de João Paulo, em qualquer condição de vento, e praticamente nulas no interior da enseada, onde é lançado o efluente da ETE” (UFSC, 2021, p. 3). Desse modo, a totalidade do material particulado que entra no sistema, com potencial de formar a deposição da lama, tende a ficar retido na enseada. A nota técnica supracitada refere ainda a contaminação de organismos aquáticos. O bivalve Cyrtopleura costata, denominado de “tatu” pela comunidade, é comumente extraído do sedimento da praia de João Paulo e consumido como alimento pelos moradores (UFSC, 2021). A concha desse organismo é descrita por sua coloração clara, mas devido à condição da lama que se depositou sobre a praia, rica em matéria orgânica e sob baixa concentração de oxigênio (visível pela coloração do sedimento), a cor da concha sofreu alteração para uma coloração escura típica do sedimento que predomina atualmente. A fim de detectar a presença de contaminantes na lama e em organismos vivos da enseada, os pesquisadores da UFSC colheram três amostras da camada superior da lama depositada e um exemplar do molusco bivalve.

O material foi enviado para análise ao laboratório da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), que encontrou concentrações de metais no sedimento que são biodisponíveis, ou seja, a fração capaz de ser absorvida pelos organismos e entrar na cadeia alimentar marinha. A carne do molusco, no entanto, apresentou contaminação por arsênio (Figura 4), com concentração acima do limite indicado pela Instrução Normativa n. 88 (26/03/2021) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que trata sobre segurança alimentar. A nota técnica informa também que o arsênio é um metaloide de alta toxicidade, mesmo em baixas concentrações, pois é persistente e não é utilizado pela biota, acumulando-se nos tecidos. Sua origem em área urbana associa-se à entrada de efluente doméstico, uma vez que é produto de detergentes comuns utilizados nas residências (UFSC, 2021).

Figura 4 – Cyrtopleura costata contaminado por arsênio (esq.) comparado com molusco sadio (dir.). Fonte: Nota técnica n. 05/PES/2021 (UFSC, 2021).

A despeito de toda a mobilização da comunidade da Praia do João Paulo, esta parece não caminhar com êxito. Notícias mais recentes dão conta de que a nova Estação de Tratamento de Esgotos Saco Grande/João Paulo vem ganhando forma com o avanço das obras de ampliação, conforme veiculado no site da Casan7 .

Constata-se, portanto, que a proteção constitucional aos direitos da comunidade pesqueira está ameaçada, conforme o artigo 216 da Constituição Federal, e de acordo com o artigo 3º do decreto nº 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. De acordo com o presidente da APPAAJOP, Silvani Ferreira, a comunidade está apavorada por não ter a garantia de qualidade no tratamento e porque a baía não suportará a carga de efluente tratado que será lançada pelo emissário. Na verdade, trata-se de uma ameaça bem mais ampla. Os danos provocados pela má gestão de uma estação de tratamento de esgoto atingem a sociedade como um todo, o que torna ainda mais necessárias a crítica e a denúncia a essa forma de injustiça socioambiental.


¹Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) (garcez.carmen@gmail.com)
²Lei Federal n° 4771/65, revogada pela Lei no 12.651, de 2012
³Fala Universidades, 18 mar. 2020. Disponível em: falauniversidades.com.br/viver-do-mar-dificuldades-evivencias-na-pesca-artesanal-manezinha/. Acesso em: 30 nov. 2021.
⁴“Notícias da UFSC”. 4 ago. 2021. Disponível em: noticias.ufsc.br/2021/08/pesquisadores-da-ufscemitem-nota-tecnica-sobre-a-lama-depositada-na-praia-da-enseada-de-joao-paulo/. Acesso em: 30 nov. 2021.
5 VF: “Relatório nº 018/2013 – COMPLEMENTO”, p. 9. Disponível em: https://www.aresc.sc.gov.br/index.php/documentos/relatorios-de-fiscalizacao-de-municipiosconveniados/municipios-agua/florianopolis/535-acompanhamento-28-08-2013-florianopoliscomplemento-esgoto/file. Acesso em: 10 abr. 2022.
6 VF: “Relatório ARESC GEFIS nº 014/2019”, p. 62. Disponível em: https://www.aresc.sc.gov.br/index.php/documentos/relatorios-de-fiscalizacao-de-municipiosconveniados/municipios-agua/florianopolis/1846-gefis-014-2019-acompanhamento-florianopolis-ses/file. Acesso em: 10 abr. 2022.
7 VF: “Florianópolis: obras de ampliação da ETE João Paulo avançam e vão dando forma às novas estruturas” (31/01/2022) e “Florianópolis: ETE João Paulo passa por nova etapa de concretagem de tanque aerador” (01/04/2022). Disponíveis em: https://www.casan.com.br/noticia/index/url/florianopolis-obras-de-ampliacao-da-ete-joao-pauloavancam-e-vao-dando-forma-as-novas-estruturas#0 e https://www.casan.com.br/noticia/index/url/florianopolis-ete-joao-paulo-passa-por-nova-etapa-deconcretagem-de-tanque-aerador#0. Acessos em: 10 abr. 2022.

Referências

CRUZ, P. A. F. O pescador entre terras e mares: história, cultura e identidade da pesca artesanal na Praia do João Paulo (Florianópolis-SC). In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 18, 2019, Natal. Anais […]. Natal: EDUFRN, 2019. Disponível em: anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php?reqid=719. Acesso em: 5 mar. 2021.


CZIZEWESKI, A. C. Circulação nos arredores da Ilha de Santa Catarina. 2016.


Florianópolis: UFSC, 2016. FLORIANÓPOLIS (Município). Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi (PMMI). 2019. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/imagens/18_12_2019_19_08_d5e2c49d0c9755e746ed 3af7f4e9266c.jpg. Acesso em: 10 abr. 2022.


JEREMIAS, L. G. Análise da ocupação urbana em zona de amortecimento do Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi/SC. Orientadora: Michele Monguilhott. Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Geografia – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.


OBSERVA – Observatório de Áreas Protegidas. Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi. 24 abr. 2018. Disponível em: https://observa.ufsc.br/2018/04/24/parque-municipal-domanguezal-do-itacorubi/. Acesso em: 5 set. 2021.

UFSC. Nota técnica n. 05/PES/2021, de 29 de julho de 2021. Projeto Ecoando Sustentabilidade (PES). Assunto: Desenvolvimento e Impacto da Lama na praia de João Paulo. Florianópolis: UFSC, 2021. Disponível em: noticias.paginas.ufsc.br/files/2021/08/Nota-t%C3%A9cnica-05-2021-Jo%C3%A3oPaulo.pdf. Acesso em: 5 set. 2021.