Desigualdade Ambiental em comunidades pesqueiras: o caso do Pontal da Barra – Pelotas/RS

Autores: Fabiane Fagundes da Fonseca ¹

O território pesqueiro Pontal da Barra está inserido na Lagoa dos Patos, localizada no município de Pelotas, extremo sul do Rio Grande do Sul. Realiza a comunicação do banhado² Pontal da Barra, atualmente uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável na categoria Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com o Canal São Gonçalo, uma Área de Preservação Permanente (APP)³, portanto, de domínio público (Figura 1). Na localidade há uma comunidade pesqueira de, pelo menos, 70 anos, considerando o uso do ambiente para atraque das embarcações e ações de captura nas safras e entressafras de pescados, e posterior estabelecimento de residências fixas de pescadores(as) artesanais a partir da década de 60.

Figura 1 – Localização da comunidade pesqueira Pontal da Barra de Pelotas enquanto porção limítrofe do Banhado Pontal da Barra com o Canal São Gonçalo e Lagoa dos Patos – RS. Fonte: Google Maps, 2022.

A região em que se insere o território tem ampla exploração turística e há décadas tem sido alvo da especulação imobiliária, consolidando um contexto de conflito ambiental histórico (NEBEL, 2015). Além disso, a comunidade sofreu – e ainda perdura – com a falta de acesso a direitos básicos, exemplificada pela conquista tardia da instalação da água potável, no ano de 2002, e da energia elétrica em 2011. Já em relação a mobilidade urbana, não há acesso universal ao transporte público, visto que esse é limitado ao micro-ônibus escolar usado apenas para trânsito de estudantes devidamente matriculados(as) na escola municipal de ensino fundamental no Laranjal, bairro em que está localizada a comunidade.
Essa realidade de desigualdade ambiental (ACSELRAD et al., 2009) em termos de acesso à direitos básicos, ocasionalmente, é acrescida de episódios de obstrução da única estrada de acesso à comunidade, levando ao isolamento terrestre em situações extremas, em virtude de cenários de alta pluviosidade na região. A comunidade local tem pautado publicamente a construção de algum mecanismo que concilie a contenção das enchentes, garantindo seu direito de acesso, e a preservação do ecossistema local. Esse tema foi debatido em recente Audiência Pública da Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas. Ademais, a comunidade sofre constantemente com narrativas públicas – seja da mídia, ou mesmo de instituições do Poder Público – que buscam invisibilizar o seu aspecto tradicional, sendo enquadrada como ocupação irregular (SILVA et al., 2015) ou ilegal (GOMES et al., 2007), degradadora ambiental (PACHECO & SIMON, 2021), zona de risco ou vulnerabilidade (SILVA et al., 2015), sem ter evidenciada a sua relação intrínseca com este território tradicionalmente ocupado pelo seu modo de vida pesqueiro.

Nebel (2015) mapeou o conflito do Pontal da Barra, identificando os diferentes atores envolvidos, bem como suas narrativas e ações. Entre os atores, ela destaca: Poder Público local, empresários do setor imobiliário, grupos ambientalistas, pescadores(as) artesanais e outros(as) moradores(as) de classe popular. Para a autora, no caso específico dos(as) pescadores(as) artesanais “o não reconhecimento desses moradores como portadores de direitos e sujeitos políticos enunciadores de suas histórias os têm submetido a múltiplas formas de dominação e de exclusão” (NEBEL, 2015, p.170). Tal afirmação se torna evidente ao se observar as estratégias estatais de isolamento em termos de direitos sociais, bem como de direitos políticos, essa última realizada por meio da exclusão da comunidade da participação social nos temas de seu interesse.
Atualmente, a localidade tem sido alvo de uma proposta de criação de Unidade de Conservação de proteção integral municipal, o qual sugere a alteração do status de RPPN para Refúgio da Vida Silvestre (REVIS)⁴, por meio de um relatório técnico publicado pela Universidade Federal de Pelotas (BARCELLOS, 2019). Tal proposição foi apresentada ao executivo municipal e vem sendo noticiada, em espaços públicos e pelas redes sociais, como alternativa de preservação ao local. Ao se analisar o referido relatório técnico verificou-se o não envolvimento dos(as) pescadores(as) artesanais em sua elaboração, seja através de consulta ou participação ativa.

Além disso, no que se refere à caracterização da comunidade, o relatório dispõe de uma descrição limitada e incompleta, sem defini-la enquanto um povo tradicional, conforme foi enquadrada em outras investigações sobre o Pontal da Barra (NEBEL, 2015; MEOTTI & CHIARELLI, 2021). Destaca-se também a apresentação de informações desatualizadas quanto aos serviços públicos acessados pelo grupo, afirmando erroneamente, por exemplo, não haver coleta de resíduos sólidos urbanos no local, e também a utilização de registros fotográficos de casas em extremo estado de deterioração, o que não retrata a realidade de grande parte das residências. Na poligonal da UC disponibilizada no relatório (Figura 2), é possível inferir que a porção terrestre do território pesqueiro do Pontal da Barra está inclusa, no entanto, em conversas informais com parte da equipe técnica que o elaborou, foi afirmado que o traçado está localizado a partir das cercas que já existem, as quais separam a comunidade da RPPN. Destaca-se que ainda que a comunidade esteja ao redor de uma parte da poligonal, ela pode sofrer restrições de uso (seja para moradia, lazer, ou mesmo para práticas tradicionais pesqueiras) uma vez ocupa aquilo que seria a “Zona de Amortecimento”5 , mecanismo dispensado no contexto de RPPN, mas obrigatório no âmbito de REVIS.

Ademais, na coleta de dados da pesquisa em andamento 6, tem sido percebido que o uso do Pontal da Barra pelos(as) pescadores(as) artesanais é anterior ao próprio processo de estabelecimento das residências, especialmente para atraque das embarcações, o que possivelmente envolvia o banhado, na época diretamente conectado ao Canal São Gonçalo, podendo haver usos materiais e simbólicos desse ambiente. Desse modo, considera-se que não está explícito no relatório técnico se haveria implicações de acesso e uso por parte comunidade pesqueira, ainda que alguns trabalhos acadêmicos tenham as restrições (sem mencionar quais) como expectativa de resultado da alteração da categoria da UC (PACHECO & SIMON, 2021). Assim, existem diversas dúvidas sobre os impactos efetivos disso sobre a comunidade, apontando, novamente, para a carência de informações no que concerne a esse aspecto da proposta. Nebel (2015) destaca a importância do movimento ambientalista local na contenção do avanço da especulação imobiliária sobre o banhado do Pontal da Barra e, por consequência, sobre o território tradicional de pesca, através da pauta de conservação das espécies, ecossistemas e da própria função de controle hidrológico exercida pelo banhado. Entretanto, a autora salienta a distância entre esse grupo e a comunidade local, algo que se perpetua na proposição da UC. Na perspectiva da Ecologia Política (LOUREIRO, 2012) entende-se que a conservação de ambientes deve estar aliada a garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, sob pena de incorrer em injustiças ambientais em nome da proteção natural (DIEGUES, 2008). Nesse sentido, compreende-se que a comunidade pesqueira Pontal da Barra de Pelotas, enquanto povo tradicional, resguardado pela Convenção da Organização Internacional do Trabalho 169/1989, da qual o Brasil é signatário, e pelo Decreto Nº 6.040/2007, tem direito ao seu território e, portanto, de participar de todas as discussões e decisões que a envolve. Esse aspecto está previsto também no Artº 5ª, inciso III, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que coloca enquanto diretriz do SNUC assegurar “a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação”.

Figura 2 – Poligonal da Refúgio da Vida Silvestre Pontal da Barra do Laranjal retirada do documento “Fundamentação Técnico-Científica para a criação da Unidade de Conservação Pontal da Barra do Laranjal, Pelotas, RS”, 2020. Fonte: BARCELLOS et al., 2019.

Dessa forma, é importante que todos e quaisquer projetos que busquem interferir neste território – seja para fins econômicos, conservacionistas, ou outros garantam o acesso livre às informações para estas comunidades, bem como a consulta prévia sobre tais propostas, com vista a reduzir possíveis conflitos ambientais associados. Por fim, destaca-se que a presente escrita foi realizada por uma moradora local, filha da pesca artesanal, bacharela em Ciências Biológicas, que atualmente encontra-se na condição de aluna ao nível de mestrado, realizando uma investigação ue visa evidenciar os aspectos de tradicionalidade desta comunidade, como um contraponto à racionalidade instrumental (PORTO-GONÇALVES, 2012) hegemônica na ciência e na gestão pública. Após o exposto, cogita-se que a produção científica hegemônica sobre o Pontal da Barra, especialmente no campo das ciências naturais e alguns setores das ciências sociais, apesar de ter importância no contexto do debate ecobiológico e arqueológico sobre o local, tem contribuído para a marginalização dos (as) pescadores (as) artesanais, reproduzindo uma narrativa inconsistente sobre essa comunidade, o que favorece a exclusão deles (as) de seus direitos territoriais, sociais e políticos. Esse elemento será analisado de maneira profunda na construção da dissertação.


¹Universidade Federal do Rio Grande, Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – PPGEA (fabianebiofonseca@gmail.com).
²”O termo banhado refere-se a um tipo de Área Úmida que apresenta alta complexidade e grande diversidade de gradientes ambientais. Estes ecossistemas são caracterizados pela presença de: i) depósitos paludiais e turfas; ii) solos hidromórficos; e iii) presença de macrófitas aquáticas. São regulados pelos pulsos de inundação, permanecendo constante ou temporariamente inundados, com a presença de vegetação adaptada às flutuações do nível da água e uma biota característica” (SIMIONI & GUASSELLI, 2017, p. 43). No Rio Grande do Sul esses ambientes são considerados Áreas de Preservação Permanente (SIMIONI & GUASSELLI, 2017).
³A Lei nº 12.651/ 2012 define em seu artigo 4º, inciso primeiro, que configuram-se como Área de Preservação Permanente “as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura”, realidade do Canal São Gonçalo visto que apresenta largura variável de 200 a 300 metros, conforme Superintendência de Portos e Hidrovias do Rio Grande do Sul.
⁴De acordo com a Lei nº 9.985/2000, o Refúgio da Vida Silvestre trata-se de uma categoria de Unidade de Conservação de Proteção Integral em que, objetivando a proteção de ambientes naturais, pode ser constituído em espaços particulares, desde que as atividades privadas sejam compatíveis com a intencionalidade do REVIS. Em caso de incompatibilidade é permitida a desapropriação da área, conforme disposto na legislação. Demais restrições devem ser estabelecidas por meio do Plano de Manejo da UC.
5 A Zona de Amortecimento trata-se do “entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (Lei nº 9.985/2000), tais restrições devem ser definidas no Plano de Manejo da Unidade de Conservação.
6 Pesquisa ao nível de mestrado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, na linha de pesquisa de Educação Ambiental Não-Formal.

Referências

ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BARCELLOS, S. C. B.; MENEZES, G. R.. Aspectos gerais do contexto socioeconômico do entorno. In: BARCELLOS, Silvia Carla Bauer. 2019. Fundamentação Técnico-Científica para a criação da Unidade de Conservação Pontal da Barra do Laranjal, Pelotas, RS. Disponível em: Acesso em: 10 de junho de 2020.

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