Caso das Pescadoras da Foz do Rio Doce – ES

Autor: Henrique Simões de Carvalho Costa

No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da Barragem de Fundão no Complexo Industrial de Germano, município de Mariana/MG, além de interromper a vida de 19 pessoas, causou o que pode ser considerado um dos maiores danos ambientais da História brasileira e mundial. Os 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro e sílica, segundo apuração do Ministério Público Federal, seguiram caminho de destruição pelo Córrego do Fundão, Córrego Santarém, até atingir o subdistrito de Bento Rodrigues. Já no rio Gualaxo do Norte, percorreu 55 km até o Rio Carmo, atingindo diversas comunidades ribeirinhas, tais como: Paracatu de Baixo, Camargos, Águas Claras, Pedras, Ponte do Gama, Gesteira. Após 22 km percorridos no Rio Carmo, o rejeito chega ao Rio Doce, onde segue por cerca de 540 km, até o distrito de Regência, município de Linhares/ES, onde encontra, no dia 21 de novembro, o Oceano Atlântico. Por este evento, repentinamente, milhares de pessoas tiveram suas vidas alteradas, pela falta de abastecimento de água ou pela perda em algum grau, dos demais serviços ecossistêmicos oferecidos pelo rio. O serviço de provisão de alimentos pela atividade de pesca artesanal, por exemplo, foi diretamente afetado e trouxe prejuízos, não somente a pescadores registrados ou não, mas também a toda cadeia de trabalhadores envolvidos com essa produção.

Em 54 municípios da bacia do Rio Doce exerciam a atividade 2997 pescadores registrados no SisRGP no mês anterior ao rompimento. Desses, 1100 no município de São Mateus, 765 em Linhares e 214 em Colatina (VIANA, 2016). Desse contingente pode-se destacar a presença de mulheres atuando nas pescarias assim como nas atividades relacionadas como na confecção e manutenção de redes ou no beneficiamento e comercialização do pescado (Figura 1). Por tratar-se de uma atividade instável e descontínua buscam estas mulheres estarem representadas e protegidas por legislações como vemos em atuação a Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) na luta pelo reconhecimento e melhoria das condições de trabalho.

Figura 1- Ausimara Passos com o marido Seu Flôr tiveram que fechar a peixaria após o ocorrido em Regência, no Espírito Santo. Foto: Douglas Magno (matéria de 05/11/2017 – El País)

A descrição deste caso, traz à tona a questão sobre o grau de vulnerabilidade da população afetada e sua relação com a injustiça socioambiental sofrida. Deve-se considerar que o caso das mulheres pescadoras (ou envolvidas com a atividade da pesca) ganha outra dimensão de injustiça, uma vez que, além de pertencerem ao grupo vulnerabilizado dos pescadores artesanais, pertencem também ao grupo que historicamente sofre violência física e simbólica, por discriminação de gênero (MANESCHY et al. 2012). Caso pertençam ainda a grupo étnico discriminado, isto é, se são negras ou indígenas, além de mulheres e pescadoras, por exemplo, ainda maior é a injustiça que sofrem. Esses e outros casos assemelhados configuram, para muitos autores, exemplos irrefutáveis de racismo ambiental (PACHECO e FAUSTINO, 2013).

Felizmente, a pressão exercida por movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e por promotores dos Ministérios Públicos, o caso da Barragem do Fundão vem conquistando alguns avanços na reconstrução dessas vidas e rotinas de trabalho. Reparações e indenizações, que foram e estão sendo pagas pelos responsáveis aos atingidos, buscam minimizar um passivo socioambiental que, de fato, é irreparável, por tratar-se de perda de vidas e de valores simbólicos, associados a um território que não mais existe, por conta do ocorrido.

Referências:

MANESCHY, M.C.; SIQUEIRA, D.; ALVARES, M.L.M. Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 20, n. 3, p. 713-737,  Dec.  2012.  

PACHECO, T. e FAUSTINO, C. “A Iniludível e Desumana Prevalência do Racismo Ambiental nos Conflitos do Mapa”. In: PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania; LEROY, Jean Pierre. Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p.73-114.

VIANA, J.P. Os Pescadores da Bacia do Rio Doce: subsídios para a mitigação dos impactos socioambientais do desastre da Samarco em Mariana, Minas Gerais. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica, 51 p. Brasília. 2016. 

Caso Emissário de Icaraí – RJ

Autor: Henrique Simões de Carvalho Costa

Solução de engenharia sanitária para destinação de efluentes urbanos, os emissários submarinos são também fontes poluidoras relacionadas a casos de injustiça socioambiental. Grandes volumes de esgoto doméstico e resíduos da indústria são despejados diariamente nos oceanos, interferindo diretamente na biodiversidade marinha local, por excesso de matéria orgânica e contaminação por diversas substâncias, incluindo fármacos e moléculas de difícil remoção em unidades de tratamento (PEREIRA et. al, 2016).

O emissário submarino de Icaraí, localizado no município de Niterói/RJ, lança na entrada da Baía de Guanabara (Figura 1) cerca de 952 L/s de efluentes, contendo nutrientes e microrganismos patógenos, apesar do tratamento secundário a que é submetido. O esgoto de 234 mil habitantes, cerca de 52% da rede de esgoto do município, forma pluma de efluentes que move-se de acordo com hidrodinâmica e influência das marés e contribui para a baixa qualidade das águas da Baía de Guanabara, que possui em seu entorno, cerca de 7,3 milhões de habitantes (MARQUES et. al., 2006). A atividade da pesca artesanal na região é realizada há muitas décadas e movimenta uma economia local de comercialização de pescados que garante a subsistência de milhares de famílias, seja pela venda ou pelo  consumo.   

Figura 1- Modelagem das plumas de coliformes fecais geradas pelos emissários de Icaraí na entrada da Baia de Guanabara e dos emissários da Barra da Tijuca e de Ipanema (FEITOSA, 2017)

Entre abril de 2001 e março de 2002, cerca de 1400 embarcações de pesca artesanal, com aproximadamente 3700 pescadores, realizaram capturas em toda a Baía de Guanabara. Os diversos tipos de pescarias desembarcadas em 32 diferentes pontos somaram cerca de 19.000 t, correspondendo a um valor de U$ 4,8 milhões (JABLONSKI et al., 2006). Atualmente, considerando números aproximados e mais quase 20 anos de degradação, incluindo vazamento de óleo de grandes proporções ocorrido em 2003, a Baía continua contribuindo com os serviços ecossistêmicos fundamentais para o bem-estar das pessoas. Mesmo reconhecendo as condições de degradação ambiental esse contingente de trabalhadores, responsáveis pela segurança alimentar de milhares de pessoas, acabam sendo obrigados a consumir e comercializar pescados com algum grau de contaminação por metais, fármacos ou outros tipos de substância nocivas à saúde humana.

Embora neste caso a fonte poluidora não esteja relacionada a um único empreendimento, observamos uma evidente situação de injustiça ambiental quando pescadores vulnerabilizados arcam com passivos do desenvolvimento da cidade, seja consumindo esses produtos ou abastecendo populações também vulnerabilizadas nos bairros ao entorno da Baía.  

Referências:

FEITOSA, R.C. Emissários submarinos de esgotos como alternativa à minimização de riscos à saúde humana e ambiental. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro v. 22, n. 6, p. 2037-2048, June 2017. 

JABLONSKI, S.; AZEVEDO, A.F.; MOREIRA, L.H.A. Fisheries and conflicts in Guanabara Bay, Rio de Janeiro, Brazil. Braz. arch. biol. technol., Curitiba, v. 49, n. 1, p. 79-91, Jan. 2006.  

MARQUES JUNIOR, A. N.; CRAPEZ, M.A.C.; BARBOZA, C.D.N. Impact of the Icaraí Sewage Outfall in Guanabara Bay, Brazil. Braz. arch. biol. technol., Curitiba, v. 49, n. 4, p. 643-650, July 2006 

PEREIRA, Camilo D. Seabra et al. Occurrence of pharmaceuticals and cocaine in a Brazilian coastal zone. Science of the Total Environment, v. 548, p. 148-154, 2016.

Caso Ultracargo – SP

Autor: Henrique Simões de Carvalho Costa 

Movimentando cerca de um terço das trocas comerciais brasileiras, o Porto de Santos (SP) é o segundo maior porto da América Latina e Caribe, na avaliação da atividade portuária CEPAL 2018 [1], com 3.836.487 TEU,  atrás somente do Porto de Colón no Panamá com 4.324.478 TEU (CEPAL 2018) . Apesar da importância no cenário de transações comerciais do país, o Porto de Santos é também fonte de constantes passivos socioambientais, envolvendo perda e contaminação de áreas estuarinas, além de grave ameaça aos territórios pesqueiros e à segurança alimentar de centenas de famílias.

Em abril de 2015, um incêndio atingiu 6 tanques da empresa Ultracargo, contendo um total 40 milhões de litros de álcool e gasolina e consumiu durante 9 dias, em operação de rescaldo até sua contenção, cerca de 8 bilhões de litros de água do estuário (Figura 1), além de 426.000 litros de LGE (Líquido Gerador de Espuma); 4.000 litros de Cold-Fire; 4.000 litros de F500, conforme Inquérito Civil[2], aberto pelos Ministérios Públicos, para investigação dos fatos. A água utilizada que retornou para o estuário, acrescida de líquidos antichamas tóxicos (DA SILVA et al., 2019) e a temperatura mais elevada, afetou a biota aquática da região, ocasionando, somente no período do incêndio, a morte de ao menos 9 toneladas de peixes de 142 diferentes espécies (ROTUNDO et al., 2015). Como consequência, houve também comprometimento da produção de pescadores artesanais. Após 4 anos e 1 mês do ocorrido, um Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta Parcial é assinado em um acordo extrajudicial com as empresas responsáveis, onde são previstas reparações a 2056 pescadores(as) e trabalhadores(as) ligados à atividade. A reparação consistiu no pagamento de 1 salário mínimo paulista por mês durante 1 ano para cada afetado e foi condicionada a uma contrapartida dos pescadores, de realizar práticas de manejo das 10 principais espécies de interesse comercial, com início em agosto de 2019, seguindo cartilha elaborada com períodos e locais onde cada espécie não deve ser pescada. O Termo acordado também prevê fundo para investimentos em infraestruturas e projetos de apoio à pesca.

Figura 1- Imagem aérea da operação de rescaldo com água e líquido anti-chamas. Foto: Diego Lameiro/ Corpo de Bombeiros da PMESP (DANIEL, 2018)

A atuação dos Ministérios Públicos na condução do processo de negociação com empresas responsáveis foi determinante em diferentes aspectos. Inicialmente, pela sensibilidade dos promotores de identificar no caso uma evidente situação de injustiça com pescadores, que tiveram suas pescarias interrompidas por determinação do poder público imediatamente após o incêndio, além de redução de suas produções até a recuperação do ecossistema. Depois, por delinearem para o caso, modelo de danos difusos e coletivos, utilizando-se de recursos, como o processo de autodeclaração previsto na Convenção 169[3]  da Organização Internacional do Trabalho. As judicializações individuais contra as empresas responsáveis por danos materiais foram indeferidas pelos juízes por falta de relação causal entre os efeitos do incêndio e a produção de pescados dos afetados. Também foram determinantes, a promoção de audiências públicas com a presença das comunidades afetadas e reuniões participativas, para a elaboração das regras de manejo das principais espécies capturadas, como contrapartida dos afetados e para o recebimento da reparação.

A organização da sociedade civil e a Academia contribuíram, segundo testemunho de um dos autores deste capítulo, com a construção do acordo extrajudicial, constituído na medida em que trouxeram em diferentes momentos da negociação, aporte de conhecimento técnico-científico, para embasamento das decisões tomadas. Também foram importantes nos processos de identificação e consulta e na facilitação do diálogo entre instituições e comunidades afetadas, trazendo informações da negociação dos Ministérios Públicos com as empresas para os pescadores e levando informações e demandas dos pescadores para a mesa de negociações.


[1] Link

[2] IC 28/2015 (MPE) E 1.34.012.000220/2015-55 (MPF)

[3] Link

Referências:

DA SILVA, S.C; PUSCEDDU, F.H; DOS SANTOS BARBOSA ORTEGA, A; ABESSA, D.M.S.; PEREIRA, C.D.S.; MARANHO, L.A. Aqueous Film-Forming Foams (AFFFs) Are Very Toxic to Aquatic Microcrustaceans. WATER AIR AND SOIL POLLUTION, v. 230, p. 260, 2019.

ROTUNDO, M.M., Laranjeira, M.E., Cardoso, G.S. (2015). Incêndio na área portuária de Santos (SP): impacto sobre a diversidade de peixes. In: Anais XII Congresso de Ecologia do Brasil, São Lourenço, MG, Brazil.

Caso Centro de Lançamento de Alcântara – MA

Autores: Enaile do Espírito Santo Iadanza¹; Marcela Dálete de Moraes Santos²

Em dezembro de 2019, cerca de 40 estudantes, professores e técnicos da UnB, participantes da Vivência Amazônica³, puderam conhecer a realidade das comunidades quilombolas Mamuna e Canelatiua, no município de Alcântara, estado do Maranhão, articuladas pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE). Ambas se localizam no litoral do município, na primeira vivem 80 famílias e na segunda 67 famílias. O município de Alcântara possui mais de 200 comunidades quilombolas, que se instalaram na região no período colonial. Especialmente a partir de meados do século XVIII, o tráfico de homens e mulheres escravizados provenientes da África teve um impulso, eram considerados a mais importante “mercadoria” da época. Um estudo antropológico, realizado por Almeida (2006), mostra que foram essas populações que se estabeleceram na região, principalmente a partir da decadência econômica de Alcântara.

Não são recentes os debates relacionados às comunidades quilombolas do município de Alcântara e o Centro de Lançamento de Alcântara, administrado pela Aeronáutica. Desde a década de 1980, por ocasião da instalação deste Centro que se trava uma dura batalha. Os quilombolas buscando a permanência em seu território ancestral e a Aeronáutica tentando a remoção das comunidades, em busca de novos espaços para sua expansão (SOUZA FILHO e ANDRADE, 2020).

Foram mais de 300 famílias desapropriadas de 1986 a 1988 e instaladas em agrovilas construídas pela Aeronáutica (LOPES, 2016). Esse deslocamento proporcionou uma alteração no modo de vida dessas populações, que viviam da pesca, da agricultura e do extrativismo, com impactos sem precedentes em seus costumes e práticas. A experiência das populações nas agrovilas criou uma enorme insegurança nas demais comunidades quilombolas que intensificaram a resistência à desapropriação de seus territórios de direito.

As comunidades compulsoriamente deslocadas para as agrovilas eram impedidas de acessar o mar e não tinham terra suficiente para o plantio, além de nos arredores das casas não haver uma grande presença de árvores frutíferas ou para sombreamento, causando um distanciamento da relação da população com a natureza. Assim, passaram a depender dos peixes fornecidos pelas comunidades vizinhas. Também suas moradias onde foram instalados nas agrovilas foram sorteadas, não respeitando as relações de vizinhança estabelecidas há séculos pelas gerações passadas. Eram ainda impedidos de visitar seus mortos no cemitério, por ser área desapropriada e cedida ao Centro de Lançamento. Mesmo as comunidades quilombolas que não foram deslocadas sofrem com o poder do Centro de Lançamento de Alcântara, segundo as conversas realizadas nas comunidades.

Tem uma grande luta. É uma guerra viva mesmo. E o que é o pior de tudo é que nós não estamos brigando com o latifúndio, com os fazendeiros… Estamos brigando com o Estado, com quem poderia nos proteger, nos dar apoio, nos ajudar, nos dar saúde, educação, infraestrutura, tudo! É esse que tá nos causando problema, esse é que tá nos tirando de onde nós moramos. E hoje eles mandam mais do que nós. O Centro de Lançamento manda mais dentro de Alcântara do que os próprios moradores, que são centenários! Eles chegam simplesmente e dizem um não! Vocês não podem! Pois é, infelizmente não podemos fazer nada. Nós não podemos tirar um pouquinho de areia aqui dentro porque se o Centro de Lançamento vê a gente tirar uma areia pra fazer a nossa própria casa, eles vão lá e embargam, mandam parar (moradora da comunidade de Mamuna).

Os quilombolas de Mamuna e Canelatiua são principalmente agricultores e pescadores. Produzem para sobrevivência e disponibilizam o excedente para o mercado, principalmente o pescado e a farinha de mandioca. Suas formas de produzir e se relacionar com a natureza são seculares. Conhecem a vegetação local de onde retiram produtos para subsistência, construções e lenha. Sem suas terras e acesso ao mar, mais indivíduos pertencentes a essas comunidades perderão seu meio de vida e uma parte importante de sua cultura e identidade.

Ao longo desses anos, a instabilidade continuou com ameaças de deslocar famílias das comunidades quilombolas para locais definidos pelo Centro de Lançamento com o propósito de ampliação de sua área, principalmente para fins comerciais. Entretanto, os membros das comunidades quilombolas se organizaram. Ao Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR-Alcântara), que já existia, se somaram o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA) e a Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), organizações que passaram a ter um papel importante na defesa das comunidades quilombolas (IPEA, 2018; SOUZA FILHO e ANDRADE, 2020).

As comunidades quilombolas de Alcântara, além da Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, que garantiu aos quilombolas o direito aos territórios de vida e trabalho, contam com um instrumento importante para sua defesa que é a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta Convenção, ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada pelo governo brasileiro em 2004, garante a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e tribais sob qualquer medida administrativa ou legislativa que os afete. Esses instrumentos têm sido utilizados amplamente para o enfrentamento jurídico e político dos movimentos em defesa dos territórios quilombolas.

Ainda assim, com esses instrumentos de amparo jurídico, durante a pandemia da COVID 19, o governo brasileiro emitiu a Resolução nº 11 de 27 de março de 2020, que impõe imediata remoção das comunidades quilombolas de Alcântara da área de interesse do Programa Espacial Brasileiro. Isto para assegurar a ampliação da área do Centro de Lançamento de Alcântara, a ser utilizado comercialmente, assegurando o cumprimento do Acordo de Salvaguarda Tecnológica, assinado entre Brasil e Estados Unidos em 2019, e aprovado pela Câmara dos Deputados no mesmo ano.

Esta resolução não levou em consideração nem a Constituição Federal, nem a Convenção 169 da OIT. O Ministério Público conseguiu que o governo federal se comprometesse a não tomar nenhuma medida definida pela resolução nº 11 enquanto durar a pandemia de COVID 19. O fato é que, caso a medida vá adiante, diversas comunidades quilombolas de Alcântara, entre elas as comunidades Mamuna e Canelatiua, serão desestruturadas social, econômica e culturalmente. Há que somar esforços para que essas comunidades permaneçam em seus territórios de forma definitiva, caso contrário o desastre não terá precedentes.

É como se fosse uma coisa que vem pra destruir completamente, é você deixar tudo pra trás, é como ter um filho arrancado da sua vida e ser levado pra qualquer lugar. Então é uma coisa que não sabemos, que não sei nem dizer, porque não tenho palavras que defina o quanto eu vou ser afetada saindo daqui (morador de Canelatiua).

Figura 1. Praia da comunidade quilombola Mamuna Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019

Figura 2. Praia da comunidade quilombola Canelatiua. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019

Figura 3. Moradoras e construções dentro da comunidade quilombola Mamuna. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019

Figura 4. Quintal de uma das propriedades dentro da comunidade quilombola Mamuna. Foto: Acervo Vivência Amazônica 2019

 Referências:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas de Alcântara e a base de lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico. Vol. 2, Brasília: MMA, 2006.

BRAGA, Yara Maria Rosendo de Oliveira. Território étnico: conflitos territoriais em Alcântara – Maranhão. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Universidade do Vale da Paraíba, São José dos Campos, São Paulo 2011.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. O Centro de Lançamento de Alcântara: abertura para o mercado internacional de satélites e salvaguardas para a soberania nacional. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2018. 58 p. (Texto para discussão nº 2423).

LOPES, Danilo da Conceição Serejo. As territorialidades específicas como categoria de análise na construção do direito de propriedade das Comunidades Quilombolas de Alcântara. São Luís, 2016. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Ciência Política, Universidade Estadual do Maranhão, 2016. 94 pSOUZA FILHO, Benedito; ANDRADE, Maristela de Paula. A Dois Graus do Equador: o Estado brasileiro contra os quilombolas de Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2020. 307 p. Disponível em: <https://sigaa.ufma.br/sigaa/verProducao?idProducao=1319921&key=9c14db06b5973c5a550717c815ebb87f>. Acesso em: 21 de outubro de 2020.

Caso Bramex Brasil Mercantil S/A

Autoras:  Yedda Christina Bezerra Barbosa de Oliveira, Rita Mascarenhas

Reservas Extrativistas (RESEX) são unidades de conservação cujo principal objetivo é proteger os meios de vida e a cultura de populações extrativistas e garantir a sustentabilidade econômica e do uso dos recursos naturais (BRASIL, 2000). O Brasil possui 28 RESEXs inseridas em ecossistemas de manguezal e estuário, das quais apenas cinco apresentam planos de manejo (ALMEIDA-FILHO, et al, 2020). A ausência de um instrumento de gestão norteador dificulta o manejo e os processos de tomada de decisão nas unidades de conservação, favorecendo o desequilíbrio na relação entre as pessoas e o ambiente (SANTOS; KRAWIEC, 2011).

Grandes empreendimentos consumidores de recursos naturais e altamente poluentes persistem na prática de atividades insustentáveis (a despeito de processos judiciais e autuações), provocam a degradação ambiental, relegando a população tradicional à maior vulnerabilidade social (ANDRIGUETTO-FILHO, 2004). A criação da RESEX Acaú-Goiana, por exemplo, foi motivada por uma reivindicação das populações tradicionais extrativistas nos municípios de Pitimbú e Caaporã (PB) e Goiana (PE) (FADIGAS; GARCIA, 2010). Numa área de 6.678,30 hectares, estão presentes seis comunidades (Baldo do Rio, Tejucupapo, Povoação de São Lourenço, Carne de Vaca, Acaú e Caaporã) (RODRIGUES et al., 2017) que desempenham atividades voltadas à pesca artesanal e coleta de recursos estuarinos e marinhos, como marisco berbigão ou massunim (Anomalocardia brasiliana), siri-açu (Callinectes danae), aratu (Goniopsis cruentata), caranguejo-uçá (Ucides cordatus) e guaiamum (Cardisoma guanhumi) (Fig. 1) (FADIGAS; GARCIA, 2010). No final da década de 1990, empreendimentos destinados à criação de camarão em cativeiro (carcinicultura) se instalaram no estuário do Rio Goiana (Ilha do Tariri), ocupando territórios destinados anteriormente às populações extrativistas (TARGINO, 2012).

As atividades do grupo Bramex Brasil Mercantil S/A, consistentes na implantação do chamado Projeto Atlantis, ocupam uma área de 4.600 m² no centro da RESEX Acaú-Goiana e ocasionam diversos conflitos socioambientais (GONÇALVES et al., 2019). A impossibilidade de acesso ao estuário, para coleta de mariscos e caranguejos, é a principal causa dos desentendimentos, segundo estudos e relatos locais. Além da presença de seguranças do empreendimento, a degradação ambiental, resultante do despejo sem tratamento das águas residuais dos tanques durante a despesca, desestimulam a prática da atividade extrativista pelos pescadores (TARGINO, 2012). De acordo com  pescadores locais, “o pescador não pode pescar próximo aos viveiros” e houve até o caso de uma pescadora idosa que foi presa no manguezal por seguranças armados dos viveiros, em 2019, que apreenderam sua canoa, sendo resgatada pela comunidade horas depois.

O cultivo de camarão provocou modificações na paisagem, reduziu a integridade do ambiente e, somado a fatores socioeconômicos locais (como expansão do mercado e mão de obra ociosa na região), também contribuiu para a diminuição na densidade dos bancos de mariscos (TARGINO, 2012). Além disso, a carcinicultura induziu a comunidade a passar mais tempo pescando, mais distante de seus locais tradicionais, modificando seu modo de vida extrativista tradicional (FADIGAS; GARCIA, 2010). 

Como pode ser visualizado na Figura 1, a RESEX exclui o território do empreendimento, pois caso contrário não teria como realizar a regularização fundiária devida, além de promover a viabilização política de sua implantação. Em seu Acordo de Gestão, existem regras a serem cumpridas apenas pelos beneficiários, ou seja, os pescadores e as pescadoras. O plano de manejo, que poderia dirimir as falhas desse acordo e prever meios para resolver os conflitos com os empreendedores ainda está em fase inicial de elaboração.

Figura 1. Caracterização do uso dos recursos marinhos na RESEX Acaú-Goiana (CARVALHO et al., 2016).

O caso da RESEX Acaú-Goiana é, desafortunadamente, mais um entre tantos outros conflitos socioambientais no Brasil que resultam em vulnerabilidade e perda de identidade comunitária, comprometendo a sobrevivência de comunidades tradicionais, em contrapartida à geração de lucro pelo setor privado. O resultado é, no médio e longo prazos, o declínio dos recursos pesqueiros e dos serviços prestados pelos manguezais na manutenção da biodiversidade. 

A delimitação das porções do território e do uso de seus recursos naturais é uma estratégia crucial para a proteção dos ecossistemas, sua biodiversidade e os valores culturais neles presentes (DUDLEY, 2008). Diante da ausência do plano de manejo, dificulta-se o estabelecimento de acordos de uso dos territórios e a prevenção de danos ambientais em uma unidade de conservação (SANTOS; KRAWIEC,2011). Sem um instrumento de controle e monitoramento da poluição e das atividades extrativistas, os pescadores e as pescadoras da RESEX são acometidos de mais uma injustiça socioambiental.

Referências:

ANDRIGUETTO-FILHO, J. M. Das “dinâmicas naturais” aos “usos e conflitos”: uma reflexão sobre a evolução epistemológica da linha do “costeiro”. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 10, p. 187–192, 2004.

BRASIL. Lei Federal No 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. 2000.

CARVALHO, D. A.; NASCIMENTO, J. G. C. (In memoriam); LUCATELLI, M. M.; CAMPOS, P. G.; PESSANHA, M. M.; NÓBREGA, M. F.; SOUZA, E. A. De; BORBA, C. A. C. Mapeamento participativo do uso dos recursos naturais como ferramenta de gestão participativa: o caso da RESEX Marinha de Acaú-Goiana PB/PE. In: III SEMINÁRIO NACIONAL ESPAÇOS COSTEIROS 2016: Universidade Federal da Bahia, 2016.

DUDLEY, N. Guidelines for applying protected area management categories. IUCN ed. Gland, Switzerland: IUCN, 2008.

FADIGAS, A. B. de M.; GARCIA, L. G. Uma análise do processo participativo para a conservação do ambiente na criação da Reserva Extrativista Acaú-Goiana. Sociedade & Natureza, v. 22, n. 3, p. 561–576, 2010.

RODRIGUES, G. G.; SOUZA, A. E. V. N.; LIMA, M. E. A.; NETO, I. R. G. C.; LEITE, J. K. da S.; NASCIMENTO, D. M.; HARDER, E.; FREITAS, A. E. C. e. Território, paisagens e identidades culturais em uma Reserva Extrativista marinha do nordeste brasileiro. Revista Movimentos Sociais & Dinâmicas Espaciais, v. 06, n. 01, p. 235–242, 2017.

SANTOS, C. F. Dos; KRAWIEC, V. A. da M. A situação ambiental e a administração das Unidades de Conservação em Campo Grande-MS, na visão de seus gestores. Floresta e Ambiente, v. 18, n. 3, p. 334–342, 2011.

TARGINO, G. D. “Sobre as águas”: a tradição e a pesca artesanal em três comunidades da reserva extrativista Acaú-PB/Goiana-PE. 2012. Universidade Federal da Paraíba, 2012. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9752>

Caso do Barramento do Rio Tatuoca – PE

Autores: Rodrigo Lima Guerra de Moraes[1], Beatriz Mesquita[2], Mariana Vidal³, Teresinha Filha¹

O litoral do Estado de Pernambuco, historicamente, tem a pesca artesanal como a principal atividade de subsistência e modo de vida de sua população. Foi a pesca artesanal e as pequenas lavouras associadas, que propiciaram a manutenção de mão-de-obra para o crescimento da tradicional cultura do açúcar no estado (FREYRE, 1937), visto que na entressafra (período de inverno), a maioria dos trabalhadores eram (e ainda o são) excluídos da folha de pagamento das usinas.

Nas últimas décadas, com o deslocamento da produção açucareira para outras regiões do país e o consequente enfraquecimento dessa indústria no litoral pernambucano, a economia está se diversificando para áreas como turismo, setor portuário, petróleo e gás, entre outras (LIMA et al, 2007). O desenvolvimento econômico que acontece nas áreas costeiras e marinhas têm sido impulsionado e está sendo chamado de economia azul (WORLD BANK, 2017; BENNETT et al, 2021).

Esse novo direcionamento tem um forte componente de indução por meio de subsídios, isenção fiscal e políticas públicas por parte do governo (GUMIERO, 2018; OLIVEIRA e SORIA, 2020).  As comunidades tradicionais pesqueiras são excluídas desses processos. O que se acompanha é o contínuo desprezo do governo por comunidades que historicamente, ocupam territórios no litoral e continuam a reproduzir meios de vida e produção não reconhecidos pelo Estado. Essa diferente visão de mundo e desenvolvimento do Estado, fundamentada na reprodução do capital (HARVEY, 2011) para com parte da sociedade (comunidades tradicionais e extrativistas), causa uma série de injustiças ambientais, configurando um típico caso de “injustiça azul” (BENNETT et al, 2021).

Em Pernambuco, a instalação do Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), localizado na grande Recife, distante aproximadamente 50 Km dessa capital, vem sendo realizada desde a década de 1970. A partir dos anos 90 o projeto de cluster econômico  (conglomerado de indústria[18] s e empresas) foi priorizado pelo governo, intensificando os impactos sobre as comunidades locais. Desde sua concepção, o projeto do CIPS não considerou a existência de comunidades tradicionais na área escolhida para sua implantação. Ao longo do tempo esse erro estratégico de planejamento desencadeia conflitos territoriais  (Morreti e Cox, 2016).

Além disso, a chegada de grandes empresas como a Refinaria Abreu e Lima, Petroquímica Suape, Termoelétricas e Estaleiros, como o Estaleiro Atlântico Sul, não têm tido o devido controle pelo Estado. ALVES et al.(2019) citam a completa desobediência às leis ambientais; a irresponsabilidade ambiental das indústrias, e, principalmente, a indevida atuação dos órgãos ambientais.

Dentre algumas injustiças ambientais como expulsão e cerceamento de comunidades nesse território, destacamos a Comunidade Quilombola Ilha de Mercês. Formado por alguns núcleos populacionais descendentes de negros e negras libertas que outrora foram escravizados, o território que corresponde à Comunidade Quilombola Ilha de Mercês¹ vem sendo dividido e fragmentado há mais de quatro décadas pela construção e expansão do CIPS.  Estima-se que cerca de 800 famílias ocupavam essa região, porém hoje em dia, apenas 230 seguem resistindo no território, segundo a Associação Quilombola[3]. Além da Comunidade Quilombola, outras comunidades pesqueiras e extrativistas ocupavam tradicionalmente as ilhas de Tatuoca e Cocaia.

Figura 1 – Imagens cronológicas do barramento realizado no território de Suape: (a) 2007 – Período anterior ao barramento do rio Tatuoca; (b) 2010 – já é possível visualizar o barramento; (c) 2020 – situação atual.

Fonte: Elaboração própria em Google Earth

A ilha de Cocaia, cujos moradores e moradoras viviam exclusivamente da pesca, foi a primeira a ser afetada para dar origem às obras do Porto de Suape. Posteriormente, a ilha de Tatuoca também deixou de ser habitada pela população tradicional para a construção do Estaleiro Atlântico Sul. Além disso, a instalação da Refinaria Abreu e Lima e demais obras que compõem o CIPS, demandaram a construção de uma malha viária interligando dezenas de empresas e indústrias dentro do território tradicional quilombola, dividindo a comunidade primeiramente em duas e posteriormente em quatro. A construção dessas vias de acesso ao porto (Ex: TDR – Norte, Via Portuária) separou os rios Ipojuca, Massangana e Tatuoca, que outrora, nos períodos de maré cheia, formavam um único corpo hídrico conectando um maciço de manguezal.

Por último, o dique de enrocamento com via de acesso ligando o Estaleiro Atlântico Sul ao Porto, chamado popularmente como “barramento” (Figura 2), cortou praticamente toda a desembocadura do rio Tatuoca, impactando severamente o fluxo das marés e a dinâmica hidrológica. O rio Tatuoca, que teve sua nascente aterrada pela terraplanagem da Refinaria Abreu e Lima, ficou sem vazão, aprisionado entre as vias, culminando em um corpo d’água praticamente sufocado[4].

Figura 2 – Enrocamento com via de acesso ligando o Estaleiro Atlântico Sul ao Porto. Foto: Hamilton Tenório – Acervo Ação Comunitária Caranguejo Uçá

Os impactos gerados resultam na escassez dos recursos pesqueiros e na morte de espécies vegetais de mangue, uma vez que já não são mais banhadas pelas marés, o que compromete a resiliência do ecossistema manguezal (ALMEIDA et al, 2014). Por se tratar de uma Comunidade Tradicional, a perda territorial de áreas agricultáveis, a supressão vegetal e o desmatamento de espécies frutíferas são outros fatores que colocam em risco as principais atividades (pesca, agricultura e coleta de frutas) que geram renda para as famílias.

Outros impactos são ainda citados pela comunidade local: esgoto da refinaria que é jogado no manguezal, a maré invadindo casas, produtos químicos da refinaria, poluentes atmosféricos, poluição sonora (ALVES et al., 2019). A Comunidade Quilombola Ilha de Mercês sofre, além dos impactos ambientais, impactos sociais e culturais, danos morais, materiais, psicológicos e físicos devido à relação truculenta, opressora e violenta de vigilantes e agentes que atuam em nome de Suape. Estas ações caracterizam uma violação a todos os direitos essenciais da comunidade [5].

Diversas situações de apreensão de pescados, de apetrechos de pesca e até de agressão física são de conhecimento da Defensoria Pública da União, do Ministério Público de Pernambuco e Ministério Público Federal, que expediram uma recomendação conjunta para que os assédios e tais atuações violentas cessem. 

Recentemente houve uma tentativa extrajudicial, em vão, para que o CIPS assinasse um Termo de Ajustamento de Conduta para retirar o barramento do rio Tatuoca, uma vez que o licenciamento para essa obra previa que fosse temporária e não definitiva. A gestão de Suape alega que mantém um cronograma de execução até Junho de 2021 para o desenrocamento parcial com processos licitatórios para estudo de avaliação de impacto ambiental que visa indicar qual intervenção é a mais adequada (RACISMO AMBIENTAL, 2020). Dessa forma, perdura há mais de 10 anos como uma imposição na realidade do território. Isto significa um descumprimento das normas e acordos celebrados no momento de início da obra. 

Referências:

AGÊNCIA NACIONAL DAS FAVELAS (2021). Complexo Industrial Portuário de Suape comete racismo ambiental e viola direitos humanos. Disponível em: https://www.anf.org.br/complexo-industrial-portuario-de-suape-comete-racismo-ambiental-e-viola-direitos-humanos/. Último acesso em: 1 de Março de 2021

ALMEIDA, V. C. ; COELHO-JR, C ; FEITOSA, F. A. N. ; PASTOR, D. J. ; MONTE, G. R. . Caracterização estrutural do manguezal do rio Tabatinga, Suape, PE, Brasil. Tropical Oceanography (Online), v. 42, p. 33-47, 2014.

ALVES, S.G. Injustiças Socioambientais e Interferências na Saúde de Populações Localizadas na Área do Complexo Industrial Portuário de Suape. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente, UFPE. Recife, 2016.

ALVES, S. G. et al. Rexistência de comunidades tradicionais frente às injustiças ambientais das ações do complexo industrial portuário de Suape-PE. Gestão e sustentabilidade ambiental, 2019. v. 8, n. 3, p. 582–605.

BENNETT, N. J. et al. Blue growth and blue justice: Ten risks and solutions for the ocean economy. Marine Policy, 2021. v. 125, n. December 2020, p. 104387. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.marpol.2020.104387>.

FREYRE, G. Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937.

GUMIERO, R. G. Economic and social dimensions of PAC impacts in the Suape-PE port industrial complex in 2007-2015. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 2018. v. 14, n. 3, p. 101–123.

HARVEY, D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.

Lima, J. P. R.; Sicsú, A. B.; Padilha, M. F. F. G. (2007) Economia de Pernambuco: Transformações Recentes e Perspectivas no Contexto Regional Globalizado. Revista Econômica do Nordeste, v. 38, p. 525-541.

MORETTI, R.; COX, M. Impactos socioambientais ao longo da implantação e consolidação do Complexo Industrial Portuário de Suape – PE. Revista Gaia Scienta, v. 10, p. 98-105, 2016.

OLIVEIRA, V. de; SORIA, S. Faces do “novo” desenvolvimento: o trabalho na construção civil em Suape (PE/Brasil). Espacio Abierto, 2020. v. 29, n. 1, p. 205–224.

RACISMO AMBIENTAL (2020). Suape se recusa a formalizar acordo para salvar manguezal do rio Tatuoca. Blog Combate Racismo Ambiental. Disponível: https://racismoambiental.net.br/2020/10/28/suape-se-recusa-a-formalizar-acordo-para-salvar-manguezal-do-rio-tatuoca/. Último acesso em: 1 de março de 2021.

WORLD BANK AND UNITED NATIONS DEPARTMENT OF ECONOMIC AND SOCIAL AFFAIRS. The Potential of the Blue Economy: Increasing Long-term Benefits of the Sustainable Use of Marine Resources for Small Island Developing States and Coastal Least Developed Countries. World Bank, Washington DC, 2017.


[1] Ação Comunitária Caranguejo Uçá

[2] Fundação Joaquim Nabuco

³ Fórum Suape

[3] Comunicação pessoal, Associação Quilombola de Mercês, 2020.

[4] Rios Livres Mangues Vivos. Campanha de comunicação por Fórum Suape e Ação Comunitária Caranguejo Uçá, 2021.

[5] Rios Livres Mangues Vivos. Campanha de comunicação por Fórum Suape e Ação Comunitária Caranguejo Uçá, 2021.

Caso das Marisqueiras de Maracaípe – PE

Autores: Daniel Brandt Galvão; Sara de Castro Loebens

O litoral do Estado de Pernambuco compreende em torno de 187 km de extensão (FIDEM, 2000). Apesar da reduzida extensão de faixa costeira, os variados ecossistemas aquáticos locais proporcionam uma rica dinâmica ecológica, sendo determinantes para práticas materiais e imateriais de homens e mulheres inseridos na pesca artesanal, atividade secular e fundamental fonte de renda e do modo de vida das comunidades pesqueiras da região (RAMALHO, 2019a). Essas comunidades, compostas por pescadores de lagosta, caranguejo, ostra, marisco e peixe, capturados nos manguezais, recifes e após os recifes, foram duramente afetadas pelo evento de derramamento de petróleo que teve início no dia 30 de agosto de 2019. 

Segundo a Marinha do Brasil, entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020 foram recolhidos aproximadamente 5 mil toneladas de resíduos oriundos do derramamento (MB, 2020), que afetaram 1009 localidades, 11 estados (sendo 9, pertencentes à região Nordeste), mais de 40 áreas marinhas protegidas, ao longo de mais de 3 mil km de extensão (SOARES et al, 2020a; SOARES et al., 2020b; WWF, 2021a). Para termos uma dimensão melhor da quantidade, que deu ao desastre a categoria de maior da história do país, esse total corresponde a 37 mil barris de 159 litros (WWF, 2021a). Segundo o diretor de controle de fontes poluidoras da Agência Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) Eduardo Elvino as “..localidades em torno de 120 quilômetros, em linha reta, foram atingidas de alguma maneira” (MAR SEM FIM, 2019). Apesar disso, até o presente momento não foram definidos a origem, o ínicio e muito menos os responsáveis pelo desastre, além de evidências documentais da má gestão do Governo Federal Brasileiro perante a crise ambiental.

O Estado de Pernambuco foi atingido por duas ondas do derramamento de petróleo, a primeira ocorreu no início de setembro de 2019 em uma proporção leve, isto é, com pequenos fragmentos espalhados pela praia e que não afetou o trabalho das marisqueiras de Maracaípe. No entanto, a partir do dia 17 de outubro, uma segunda onda de petróleo atingiu a costa com muito mais volume. Nesta, a primeira praia atingida foi no extremo sul do Estado, no município de São José da Coroa Grande e as manchas foram seguindo no sentido da corrente sul-norte, atingindo o manguezal de Maracaípe (Figura 1) às 4 horas da manhã do dia 19 de outubro de 2020. Neste mesmo dia, todo o município de Ipojuca, onde fica Maracaípe, foi atingido pelas manchas de petróleo. Nos dias que se seguiram, o município de Cabo de Santo Agostinho, vizinho de Ipojuca, também foi atingido, tocando principalmente a região estuarina de Suape e as praias de Enseada dos Corais, Pedra do Xaréu, Itapuama e Paiva. A praia de Itapuama foi uma das mais impactadas pelo derramamento de petróleo no Nordeste  (Figura 2), com estimativa de mais de mil toneladas recolhidas (WWF, 2021b), mobilizando por 10 dias consecutivos (20 a 29 de outubro de 2020) aproximadamente 5 mil voluntários e órgãos ambientais para retirada do material contaminante (SALVE MARACAÍPE, em preparação).

Figura 1. Manguezal de Maracaípe. Foto: Daniel Galvão / Salve Maracaípe

Figura 2. Praia de Itapuama atingida pelo derramamento de petróleo em 2019, litoral sul de Pernambuco. Acima: Ação dos voluntários na retirada de resíduos da praia. Abaixo: Retroescavadeira retirando grande quantidade de resíduos da praia. Foto: Marcela Cintra, 2019.

Diante da gravidade do desastre, todo o litoral sul do Estado de Pernambuco voltou suas atenções para a retirada do petróleo das praias. O comércio, principalmente os bares, restaurantes e ambulantes de praia pararam suas atividades, devido às proporções do derramamento na região. Essa situação impactou diretamente as marisqueiras de Maracaípe, que dependiam do funcionamento do comércio de praia, principalmente os bares e restaurantes, para escoar a venda dos mariscos. Sem conseguir vender, sem reservas e sem assistência governamental, pelo menos 150 famílias de marisqueiras enfrentaram sua maior crise econômica.  Essas mulheres passaram por grande dificuldade, principalmente durante os primeiros meses do ocorrido, uma vez que, por medo da contaminação, a população passou a não comprar pescados como marisco, caranguejo e aratu, afirma uma marisqueira da região. Segundo Ramalho (2019b), as marisqueiras provavelmente foram as mais afetadas, com recuo da venda de produtos estuarinos entre 93% e 100%.

A crise das marisqueiras causada pelo derramamento de petróleo revela um grave caso de injustiça socioambiental, onde elas são duramente prejudicadas por uma das mais poderosas e ricas indústrias do mundo: a indústria petrolífera. Como o nome do culpado por esse crime ambiental não foi revelado ou descoberto, as marisqueiras não receberam nenhum tipo de ressarcimento ou apoio. Esse impasse resultou então na dependência direta de ajuda governamental para mitigação dos prejuízos sofridos, o que também não aconteceu. Apesar de terem sido recentemente reconhecidas através da Lei Nº 13.902, de 13 de novembro de 2019 (DOU, 2019a), que “Dispõe sobre a política de desenvolvimento e apoio às atividades das mulheres marisqueiras”, após o veto do Artigo 4º, em mensagem nos Despachos do Presidente da República (Nº 587), realizado no mesmo dia de publicação da Lei (DOU, 2019a), que versava sobre o dever do poder público de dar preferência ao pagamento de indenização as marisqueiras em caso de desastres ambientais provocados ou não por ação humana em áreas de manguezais, essas mulheres continuaram sendo desassistidas.

Um outro agravante, oriundo da desassistência governamental, foi o fato das marisqueiras não receberem o auxílio emergencial do petróleo de R$ 1.996,00 pagos pelo Governo Federal, oriundo da Medida Provisória 908/2019 (DOU, 2019b). Elas não tiveram acesso a este auxílio porque não tinham o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), fazendo com que sobrevivessem à base de doações e se alimentando por meses do próprio marisco. Os principais fatores associados a essa dificuldade em regulamentar a atividade das marisqueiras é mediado, primeiramente, pela demora na aceitação das mulheres pescadoras/marisqueiras, que ainda sofrem com o não reconhecimento histórico por seus pares e pelas políticas públicas estatais que tendem a excluí-las, marginaliza-las e invisibiliza-las dos aspectos sociais, econômicos e culturais a despeito da sua importância como fator estruturante da pesca artesanal. Além disso, existiu a exclusão dos pescadores e marisqueiras que deveriam ter sido indenizados, uma vez que muitas comunidades não são suficientemente organizadas de acordo com a lei para que todos sejam beneficiados através de um auxílio governamental (RAMALHO, 2019a). Esse último fato, também se explica por fatores relacionados a problemas estruturais governamentais e que não visam a melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais, como por exemplo à falta de modernização do processo de registro, lacunas entre as estatísticas oficiais e as reais, a obrigação do uso de um sistema online (ESTEVO et al., 2011).

Problemas relacionados à preservação e resguardo da saúde tanto das marisqueiras, quanto dos pescadores e voluntários que auxiliaram no recolhimento do petróleo, são outros agravos oriundos do derramamento de petróleo e foram amplamente discutidos por pesquisadores e evidenciados em relatórios (SEVS, 2019; RAMALHO, 2019a; COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2019; ARAÚJO et al., 2020; ESTEVO et al., 2021). Segundo a Secretaria Executiva de Vigilância Sanitária do Estado de Pernambuco (INFORME Nº 06/2019) (SEVS, 2019), os sintomas apresentados por pessoas que entraram em contato com o petróleo foram desde cefaleia, náuseas, tontura, a dores abdominais, irritações e lesões cutâneas, febre, confusão mental, entre outros. O Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho da Fiocruz Pernambuco, também alerta que o óleo bruto de petróleo, que possui solventes extremamente tóxicos e cancerígenos (aromáticos e alifáticos), podem causar sérios distúrbios neurológicos, doenças pulmonares, hepáticas e renais, entre outros (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2019). Para as marisqueiras, o risco pode ter sido ainda maior. Estevo et al. (2021), realizando entrevistas em comunidades pesqueiras localizadas nos municípios de Paripueira e Barra de Santo Antônio em Alagoas, evidenciaram que as marisqueiras da região tiveram a maior exposição ao composto pelo contato direto com a água, onde as mesmas também relataram o aumento de doenças de pele e surtos de diarréia causados pela ingestão de peixes contaminados.

O Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC) (Decreto 8127/13), só foi formalizado pelo Ministro do Meio Ambiente no dia 11 de outubro de 2019, quase um mês e meio depois do início do desastre ambiental (ESTADÃO, 2019). Nele, uma das obrigações de competência do Ministério da Saúde é dar “apoio às ações de prevenção, preparação e resposta” através da mobilização do Sistema Único de Saúde (SUS) (DOU, 2013). Apesar disso, “A União não implementou o Plano Nacional de Contingência nem no tempo nem na forma devida, prevista na legislação. Sem medidas ágeis, efetivas e com emprego das melhores técnicas disponíveis, o desastre socioambiental se tornou muito maior. E os impactos não foram e não estão sendo devidamente tratados.”, afirma o Procurador da República do caso judicial que questiona a omissão da União na implementação do Plano, Ramiro Rockenbach do Ministério Público Federal em entrevista ao Marco Zero Conteúdo (2020).

Passada a crise do petróleo, em um momento que as marisqueiras de Maracaípe estavam começando a se reerguer, uma nova crise chegou, desta vez a pandemia causada pelo coronavírus. Infelizmente, o horizonte ainda é de muitas incertezas e insegurança, as marisqueiras seguem isoladas, com pouca visibilidade social e sem assistência governamental efetiva para retirar documentos que permitam acesso a benefícios.    

Referências

ARAÚJO, M. E.; RAMALHO, C. W. N.; MELO, P. W. Pescadores artesanais, consumidores e meio ambiente: consequências imediatas do vazamento de petróleo no Estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 1, e00230319. 2020. doi: 10.1590/0102-311X00230319.

COMBATE RACISMO AMBIENTAL. Carta aberta pela declaração de estado de emergência em Saúde Pública. Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho/Departamento de Saúde Coletiva/Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz Pernambuco. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2019/10/29/carta-aberta-pela-declaracao-de-estado-de-emergencia-em-saude-publica/. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

DOU. Diário Oficial da União de 23 de outubro de 2013 – Seção 1. 2013.

DOU. Diário Oficial da União de 14 de novembro de 2019 – Seção 1. 2019a.

DOU. Diário Oficial da União de 29 de novembro de 2019 – Seção 1. 2019b.

ESTADÃO. Salles só formalizou plano 41 dias após manchas aparecerem no Nordeste. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,salles-so-formalizou-plano-41-dias-apos-manchas-aparecerem-no-nordeste,70003059406#:~:text=BRAS%C3%8DLIA%20%2D%20O%20Plano%20Nacional%20de,outubro%2C%2041%20dias%20depois%20de. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

ESTEVO, M. O.; LOPES, P. F. M.; OLIVEIRA JÚNIOR, J. G. C.; JUNQUEIRA, A. B.; SANTOS, A. P. O.; LIMA, J. A. S.; MALHADO, A. C. M.; LADLE, R. J.; CAMPOS-SILVA, J. V. Immediate social and economic impacts of a major oil spill on Brazilian coastal fishing communities. Marine Pollution Bulletin, n. 164, 111984. 2021. doi:10.1016/j.marpolbul.2021.111984.

FIDEM. Litoral de Pernambuco: Um estudo propositivo. Recife: Fundação de Desenvolvimento Municipal, 2000. 76 p.

MAR SEM FIM. Manchas de óleo em todo o litoral do Nordeste. 2019. Disponível em: https://marsemfim.com.br/manchas-de-oleo-em-oito-estados-do-nordeste-ha-um-mes/. Acesso em: 25 de fev. 2021.

MARCO ZERO CONTEÚDO. Um crime sem culpados, punições nem multas. Disponível em: https://marcozero.org/crime-petroleo-nordeste-sem-culpados-nem-multas/. Acesso em: 03 de mar. de 2021.

MB. Marinha do Brasil: Combate ao óleo. 2020. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/combate-ao-oleo/sobre. Acesso em: 25 de fev. 2021.

RAMALHO, C. W. N. O petróleo e os bloqueios à reprodução social da pesca artesanal em Pernambuco. Texto III. Recife: Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (NUHUMAR) – DS/PPGS/UFPE, 2019b. p. 01-05

RAMALHO, C. W. N. Os possíveis impactos dos vazamentos de óleo nas comunidades pesqueiras artesanais em Pernambuco: um breve e provisório balanço. Recife: Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (NUHUMAR) – PPGS/UFPE, 2019a. p. 01-05

SALVE MARACAÍPE. Relatório sobre o derramamento de petróleo no litoral sul do Estado de Pernambuco (2019-2020). em preparação.

SEVS. Intoxicações exógenas relacionadas à exposição ao petróleo no litoral de Pernambuco. Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde: Informe 06/2019. 2019.

SOARES, M. O.; TEIXEIRA, C. E. P.; BEZERRA, L. E. A.; PAIVA, S. V.; TAVARES, T. C. L.; GARCIA, T. M.; ARAÚJO, J. T.; CAMPOS, C. C.; FERREIRA, S. M. C.; MATTHEWS-CASCON, H.; FROTA, A.; MONT’ALVERNE, T. C. F.; SILVA, S. T.; RABELO, E. F.; BARROSO, C. X.; FREITAS, J. E. P.; MELO JÚNIOR, M.; CAMPELO, R. P. S.; SANTANA, C. S.; CARNEIRO, P. B. M.; MEIRELLES, A. J. SANTOS. B. A.; OLIVEIRA, A. H. B.; HORTA, P.; CAVALCANTE, R. M. Oil spill in south atlantic (Brazil): environmental and governmental disaster. Marine Policy, n. 115, 103879. 2020a. doi:10.1016/j.marpol.2020.103879.

SOARES, M. O.; TEIXEIRA, C. E. P.; BEZERRA, L. E. A.; ROSSI, S.; TAVARES, T.; CAVALCANTE, R. M. Brazil oil spill response: time for coordination. Science, n. 367, 6474. 2020b. p. 155-155. doi:10.1126/science.aaz9993.

WWF. Vazamento de petróleo completa um ano sem solução. 2021a. Disponível em: https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/reducao_de_impactos2/programa_marinho/?76948/Vazamento-de-petroleo-completa-um-ano-sem-solucao. Acesso em: 25 de fev. 2021.

WWF. Vidas sob o mar de petróleo: rede de voluntários. 2021b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UUjQZxbyzU8&ab_channel=WWF-Brasil. Acesso em: 01 de mar. 2021.

Caso do Parque Estadual de Cocó – CE

O uso do discurso de conservação da biodiversidade como legitimador de injustiças socioambientais nas comunidades tradicionais de Sabiaguaba, Fortaleza-CE

Autores: Fernanda Castelo Branco Araujo[1] , Thomaz Willian de Figueiredo Xavier[2], Roniele Silva de Sousa[3]

Mundialmente reconhecidas como ferramentas efetivas para a conservação da biodiversidade, as áreas protegidas marinhas e costeiras enfrentam desafios quanto aos seus efeitos sociais (entre outros, Martin et al, 2013; Diegues, 2008). No bairro Sabiaguaba, a criação de unidades de conservação tem servido de palco para a intensificação da desigualdade socioambiental para com as comunidades tradicionais pesqueiras locais.

A Sabiaguaba guarda importantes riquezas socioambientais de Fortaleza. Nela situa-se a foz do principal rio da cidade, o Cocó, com seus manguezais, dunas e lagoas, além de um rico patrimônio arqueológico e práticas tradicionais, tais como a pesca artesanal, a mariscagem, a coleta de frutas e uma incipiente agricultura de produtos como maxixe e mandioca como fonte de recursos complementar (Plano de manejo, 2010).

A localidade é protegida, desde 2006, por duas unidades de conservação municipais: o “Parque Natural Municipal das Dunas da Sabiaguaba”  (PNMDS) e a “Área de Proteção Ambiental da Sabiaguaba” (APA da Sabiaguaba). O PNMDS objetiva promover a “efetiva proteção de unidades de preservação permanente (APP), sítios arqueológicos, componentes da paisagem e ecossistemas de elevada fragilidade e fauna e flora de relevantes interesses socioambientais e científicos”, ao passo que a APA da Sabiaguaba, delimitada em suas adjacências, funciona como zona de amortecimento dos impactos ambientais para o parque (Fortaleza, 2006).

As UCs municipais possuem instrumentos de gestão comuns. O plano de manejo previu o zoneamento, a caracterização histórica e sociocultural, reconhecendo a existência de comunidades tradicionais no local cuja origem remonta a aldeias indígenas do século XVII, além das medidas de gestão aplicáveis (Plano de manejo, 2010). Já o Conselho Gestor das Unidades de Conservação da Sabiaguaba (CGS), instituído em junho de 2012, por meio do Decreto municipal n° 12.970, possui poder deliberativo, de modo que todas as intervenções no local devem ser por ele autorizadas.

As UCs municipais, contudo, enfrentam importantes problemas de efetividade. A população local, habitante da APA,  sofre com carências crônicas de serviços públicos essenciais, tais como: ausência de saneamento básico e pavimentação, iluminação, segurança e transporte públicos precários.[4] Ademais, foram incapazes de frear projetos de desenvolvimento de grandes impactos ambientais, mesmo porque o CGS é composto por 50% de membros do poder público e 50% da sociedade civil, incluindo-se, entre os últimos, apenas quatro cadeiras para representantes de entidades locais da Sabiaguaba (Fortaleza, 2012). A construção da rodovia CE-010, em meados de 2014, cortando as dunas milenares protegidas pelo PNMDS, por exemplo, além dos distúrbios gerados pelo trânsito de veículos de grande porte, tem causado a quebra do ciclo de vida das dunas, que são móveis, desestabilizando o rio, os manguezais e, consequentemente a subsistência de pescadores e marisqueiras da região.[5]

No final de 2015, sob a alegativa de atender uma demanda ambientalista de três décadas, o Governo Estadual do Ceará passou a intervir no local a fim de oficializar uma nova área protegida na região, o Parque Estadual do Cocó, que viria a se sobrepor a parcela do território tradicional de comunidades pesqueiras, até então protegido pela APA da Sabiaguaba.[6] Diante de ameaças de remoção desencadeadas por representantes do Poder Público estadual, duas comunidades passaram a reivindicar oficialmente o título de tradicionais:  a  “comunidade da boca da barra”, de pescadores habitantes da margem direita da foz do rio há mais de um século, e a da “casa de farinha”, composta prioritariamente por agricultores que vivem na sua margem esquerda, região chamada de caça e pesca, há cerca de sete décadas (vide Figura 1).[7] Através de intensa mobilização social,[8] foi possível frear as ações iniciais do governo e acordar a inclusão de previsão normativa assegurando provisoriamente a permanência das comunidades, até que um termo de compromisso fosse firmado, com base em estudos antropológicos, no art. 4o do seu decreto criador (Ceará,  2017). Porém, durante todo o processo prévio à criação da unidade, não foi oportunizado à comunidade discutir sobre a adequabilidade da categoria escolhida pelo Poder Público, tampouco a questão foi votada pelo CGS (Câmara et al, 2016).

Mesmo que a luta das comunidades locais tenha alcançado vitórias sociais, a  implantação do parque tem impulsionado uma série de intervenções que pouco se preocupam com o desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais afetadas. Se, por um lado, o plano de manejo recém concluído foi elogiado pelo processo participatório que nele resultou, há várias  evidências de injustiça socioambiental causadas pela UC. Aproveitando-se da posição de presidente do Conselho Gestor, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) tem priorizado equipamentos recreativos que atendem a porções do parque situadas em áreas nobres da cidade,[9] bem como projetos, a exemplo da proposta de um centro gastronômico que, embora apresente o título de tradicional, não foi discutido com toda a comunidade desde as etapas iniciais, e pretende atrair grande quantidade de visitantes externos ao território tradicional, além de promover o aumento de atividades de turismo náutico bem na foz do rio.[10]

Ao mesmo tempo, a situação de incerteza quanto à permanência das comunidades tradicionais pesqueiras no local continua. Os estudos realizados pelo governo estadual geraram conflitos entre a população local, pois consideraram toda a região como habitada por uma única comunidade tradicional, incluindo nela marisqueiras e pescadores, mas também barraqueiros e outros ocupantes que recentemente chegaram à localidade e não desempenham papel relevante na conservação dos ecossistemas locais (Consórcio TPF/GAU, 2019). Esses estudos foram questionados pela população, mas até hoje não foi dada qualquer resposta pelo Poder Público, tampouco deu-se andamento à assinatura do termo de compromisso previsto no decreto criador do parque.[11]

Vê-se, assim, que as UCs em Sabiaguaba têm sido usadas prioritariamente para atender a demandas econômicas. Enquanto as soluções para o problema territorial da população tradicional são adiadas, o Estado aproveita para minar os seus modos de vida tradicionais e asseverar os problemas socioambientais que impactam o frágil sistema socioecológico local.

Referências:

CÂMARA et al. Relatório técnico: a delimitação do Parque do Cocó – conflito socioambiental decorrente de sobreposição com a APA da Sabiaguaba. Unichristus, 2016. Disponível em: https://unichristus.edu.br/wp-content/uploads/2017/05/RELATORIO-TECNICO-SABIAGUABA.pdf. Acesso em: 05 jun. 2018.

CEARÁ. Decreto estadual nº 32.248, de 4 de junho de 2017. Disponível em: http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/20170608/do20170608p01.pdf. Acesso em: 04 abr. 2021.

CONSÓRCIO TPF/GAU. Elaboração de projetos e estudos ambientais, projetos de infraestrutura e de educação ambiental necessários para subsidiar o processo de criação e implementação de unidades de conservação no estado do Ceará, vinculadas à secretaria do meio ambiente. Produto 2: Comunidade de Sabiaguaba. Sema, 2019.

DIEGUES, C. Marine protected areas and artisanal fisheries in Brazil. Samudra monograph, ICSF,  India, 2008.

FORTALEZA. Decretos municipais nº 11.986 e 11.897, de fevereiro de 2006. Disponível em: https://www.sema.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/36/2019/04/parque-municipal-sabiaguaba.pdf. Acesso em: 04 abr. 2021.

FORTALEZA. Portaria nº 50/2012, de 20 de setembro de 2012. Disponível em: https://urbanismoemeioambiente.fortaleza.ce.gov.br/images/urbanismo-e-meio-ambiente/infocidade/cga_-_regimento_interno_cgs.pdf. Acesso em: 28 mar. 2021.

MARTIN, A.; AKOL, A.; PHILLIPS, J. Just conservation? On the fairness of sharing benefits. In:  Sikor, T. (ed.). The Justices and Injustices of Ecosystems Services. Abingdon: Routledge. p. 69-91, 2013.

PLANO DE MANEJO: Parque natural municipal das dunas de da sabiaguaba (PNMDS) e área de proteção ambiental de sabiaguaba (APA), 2010.

PLANO DE MANEJO: Parque estadual do Cocó. 2020.

Figura 1: Mapa da poligonal do Parque Estadual do Cocó, com destaque para a região da foz do rio Cocó, onde há sobreposição com a APA da Sabiaguaba.


[1] Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília e a Aix-Marseille Université.

[2] Doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará.

[3] Líder comunitário, pescador da comunidade tradicional da boca da barra da Sabiaguaba e conselheiro suplente do Parque Estadual do Cocó.

[4] Vide notícias relatando, respectivamente, problemas de sanemaneto básico, despejo de poluentes no rio e violência, que corroboram o afirmado: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2012/11/59-das-casas-em-fortaleza-tem-servico-de-saneamento-diz-ipece.html; http://g1.globo.com/ceara/noticia/2011/08/875-do-rio-coco-esta-poluido-diz-estudo-do-governo-do-ceara.html; https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/dois-corpos-sao-encontrados-decapitados-no-mangue-da-sabiaguaba-1.1850202; http://g1.globo.com/ceara/noticia/2011/07/moradores-do-bairro-sabiaguaba-em-fortaleza-reclamam-de-assaltos.html.

[5] Após mobilização da comunidade, o Ministério Público  Estadual entrou com uma ação civil pública para solicitar a reparação dos danos ambientais no PNMDS, conforme noticiado em: http://www.mpce.mp.br/2019/08/27/mpce-ingressa-com-acao-contra-governo-do-estado-e-prefeitura-de-fortaleza-para-reparacao-de-danos-ambientais-nas-dunas-da-sabiaguaba/.

[6] Uma linha do tempo contendo os principais fatos relativos ao processo de regulamentação do Parque Estadual do Cocó pode ser consultada em: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/06/demarcacao-do-parque-do-coco-de-1977-ate-2017.html>. Acesso em: 16 jul. 2018. Vale mencionar que a região ganhou mais uma UC municipal em 2009, a Arie das Dunas do Cocó.

[7] A quantidade de pessoas que compõem essas comunidades é incerta, tendo sido possível encontrar menções que variam de 20 a 150 casas para a comunidade da boca da barra e de cerca de 17 núcleos famíliares para a casa de farinha. Vide: https://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2016/06/03/noticiasjornalcotidiano,3619877/familias-lutam-para-permanecer-na-sabiaguaba.shtml; https://www.oestadoce.com.br/geral/comunidades-dependem-de-estudo-para-continuar-no-local/. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/estudos-definirao-continuidade-de-povos-tradicionais-no-coco-1.2006183.

[8] Conforme reportado pela mídia local:  <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/proposta-busca-garantir-permanencia-da-comunidade-da-sabiaguaba-no-parque-do-coco-1.1569050?page=8>. Acesso em: 17 jan. 2021.

[9] Notícias relatam  a ordem de entrega dos equipamentos do parque: <https://www.ceara.gov.br/2016/03/20/governo-do-estado-inaugura-equipamentos-e-anuncia-acoes-de-melhorias-para-o-parque-do-coco/>; <https://www.sema.ce.gov.br/2020/07/02/novos-equipamentos-no-parque-do-coco-devem-ser-entregues-ate-o-fim-do-ano/>.

[10] O projeto foi divulgado em: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2021/01/08/projeto-transforma-barracas-sabiaguaba-centro-gastronomia-veja-imagens.html>.[11] A população e movimentos socioambientais que atuam na região têm se utilizado de seus perfis na rede social Instagram para denunciar tais ocorrências. Vide: @roniele.suira; @fortalezapelasdunas; @institutoverdeluz.

Caso Ômega Energia – PI

Autora: Beatriz Matiuzzo

O Estado do Piauí apresenta o litoral menos extenso dentre os estados litorâneos brasileiros, com apenas 66 quilômetros de extensão. A área restrita acaba por potencializar conflitos socioambientais, especialmente a partir dos anos 2000, quando projetos de interesses econômicos diversos, seguindo a lógica da economia azul, começam a se estabelecer na região, alterando o ordenamento territorial construído ao longo de décadas pela população local.

Destaca-se o município de Ilha Grande e a Comunidade Pedra do Sal (parte do município de Parnaíba), ambos localizados no limite norte do litoral piauiense, nas proximidades do Delta do Parnaíba. Nessa região, empreendimentos ligados à economia azul, como parques eólicos e à exploração turística do Delta do Parnaíba contrastam com a forma de vida das comunidades tradicionais, que tem como base a pesca artesanal.

A região ainda possui duas unidades de conservação, a Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (BRASIL, 2000) e a Área de Proteção Ambiental – APA Delta do Parnaíba, unidade de conservação criada objetivando proteger o Delta do Rio Parnaíba, por meio da fauna, flora, dunas, recursos hídricos, melhoria de qualidade de vida dos moradores locais, preservação de suas culturas e tradicionalismo, assim como fomento da prática do turismo ecológico. Essa APA inclui territórios dos municípios de Ilha Grande e Parnaíba, mas também diversos outros municípios do Maranhão e Ceará (BRASIL, 1996)

Segundo dados do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica, em 2012, 190 famílias residiam nas Comunidades da Pedra do Sal e Ilha Grande. Há registros da população de pescadores e extrativistas na região desde o século XIX (DA SILVA & FAÇANHA, 2018), contudo os moradores da região não possuem legalmente a sua posse, que pertence oficialmente à família Silva, uma família historicamente ligada a cargos administrativos no estado do Piauí (SILVA, 1981).

Esse cenário faz com que o território venha acumulando conflitos socioambientais variados seguindo a lógica da economia azul. Há uma disputa  por território pesqueiro entre pescadores artesanais e pescadores industriais no período chuvoso, uma vez que os barcos industriais arrastam por longos períodos em áreas próximas da costa, destruindo pontos pesqueiros artesanais. Ameaças de perda de território tradicional pela especulação imobiliária também estão presentes, quando a região quase foi tomada por empreendimentos turísticos nos meados dos anos 2010, período em que os empreendimentos o “Pontal do Delta/Ecocity” e “Pure Resorts” tiveram suas licenças prévias liberadas, e previam a instalação de loteamentos e resorts para milhares de pessoas na região. Após intensa movimentação e estudos de impacto ambiental aprofundados demandados pelas comunidades locais, os empreendimentos turísticos não se efetivaram (REF. NOTICIA ILHA ATIVA).

Merece destaque, contudo, o uso do espaço para instalação de aerogeradores, fenômeno que já ocorreu e atualmente pode ser ter seu empreendimento expandido. A empresa Ômega Energia foi pioneira ao implementar, em 2012, um complexo eólico na região após licenciamento ambiental pela Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (SEMAR – PI), possuindo atualmente dois parques eólicos em funcionamento na região, o Delta 1 e o Delta 2, gerando conflito socioambiental.

Este primeiro conflito levou a uma série de mobilizações por parte da sociedade civil, com participação central de organizações como a Comissão Ilha Ativa (CIA) e Associação de Moradores e Pescadores da Pedra do Sal. Os conflitos, contudo, permanecem até hoje, uma vez que a mesma empresa pleiteia a ampliação do complexo eólico, com a instalação de 52 novos aerogeradores nos municípios de Ilha Grande e Parnaíba, com o parque eólico Delta 10. As negociações vêm ocorrendo desde 2019, com constantes avanços e retrocessos. O empreendimento já recebeu Licença Prévia, porém devido a alterações no projeto que representam impactos permanentes, irreversíveis e de alta magnitude (segundo o parecer Parecer SEI nº 3/2020-GR-2/GABIN/ICMBio) a Licença de Instalação ainda está tramitação.  As organizações não governamentais mencionadas também recorreram ao Ministério Público Estadual do Piauí, que pediu que sejam feitas vistorias nos parques eólicos já instalados antes de continuar com o processo de licenciamento ambiental do Delta 10.

Enquanto a luta para evitar novos empreendimentos e mais instalações de parques eólicos continua, os impactos dos aerogeradores e da perda de território já vivida são sentidos cotidianamente pela comunidade local.  Moradores relatam que, após a implantação dos aerogeradores, a comunidade ficou inviabilizada de acessar os recursos naturais, essenciais para obtenção de seu sustento, o que gera dificuldades diárias, tais como o acesso a uma lagoa que se encontra na área do empreendimento, ou a outra que foi seccionada pelas obras, ou ainda a impossibilidade de extrair recursos da mata (DA SILVA & FAÇANHA, 2018).

Há ainda impactos mais sistêmicos relatados pelos moradores da Pedra do Sal, como a emissão de ruídos, apontado pela comunidade como um dos fatores que mais causa incômodo, bem como retirada de vegetação, soterramento de lagoas, destruição das paisagens naturais muito importantes para a comunidade, aplainamento de dunas, aumento do número de acidentes com pessoas e mudança de comportamento e hábitos da comunidade (IBIAPINA, 2019). A instalação de novos parques eólicos na região, como o Delta 10, acentuaria estes impactos.

A experiência dos moradores da Pedra do Sal e Ilha Grande mostra que a luta por território no Litoral Piauiense é constante, seja através de ação coletiva e pública organizada por associações comunitárias e ONGs ambientalistas, seja no cotidiano da pesca e da coleta em “propriedades privadas”.

Desse modo, a experiência dos moradores da Pedra do Sal mostra que a luta por território no Litoral Piauiense é constante. A instalação do Complexo Eólico Delta 10, ainda em tramitação, é o caso mais recente, que exige atenção e mobilização da sociedade, seja por formas de resistência cotidiana ou por organizações da sociedade civil. É marcante como mesmo no estado com o menor litoral do país é possível identificar a quem são destinados os danos ocasionados pelos modelos de desenvolvimento econômico hegemônico.

Figura 1 – Em primeiro plano, pescadores artesanais com suas canoas. Atrás, pode-se ver algumas casas de moradores e as grandes turbinas do Complexo Eólico da Pedra do Sal da Ômega Energia. Disponível em: http://a24horas.com/2/exclusivo-omega-energia-explica-o-que-parnaiba-ganha-com-os-complexos-eolicos-na-pedra-do-sal

Figura 2 – Complexo Eólico existente, em laranja, e planejamento do complexo eólico Delta 10, em pontos azuis e verdes. Retirado do Estudo de Impacto Ambiental OMEGA Energia, Complexo Eólico Delta 10 – Delta do Parnaíba, PI. Disponível em:  

http://www.semar.pi.gov.br/download/201907/SM31_66be5a8e4d.pdf

Referências:

SILVA, Alberto. Minha vida por um Piauí melhor. Brasília: s/e, 1981.

da Silva, S. R., & Façanha, A. C. SOBRE A INFRAPOLÍTICA DO CONFLITO AMBIENTAL: notas a partir de um caso no Litoral do Piauí. Dossiê: Trabalho, Identidade e Território entre Populações Camponesas e Tradicionais no Piauí. Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Parnaíba-PI, ano IV, n. 07. 2018.

IBIAPINA, Mayara Maia. PERCEPÇÃO DE CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: um estudo sobre pescadores artesanais na Comunidade Pedra do Sal (PI). 2019.

Semar realiza audiência pública no povoado Pedra do Sal. Portal de Notícias da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí. 15 ago. 2019. Disponível em: http://www.semar.pi.gov.br/noticia.php?id=3164 Acesso em 07-jan-2021.

Comissão Ilha Ativa. Pontal do Delta/Ecocity: uma proposta de ecoturismo/resort ou um projeto de especulação imobiliária? Portal de Notícia Comissão Ilha Ativa. 7 ago 2017. Disponível em: https://www.comissaoilhaativa.org.br/2017/08/pontal-do-deltaecocity-uma-proposta-de-ecoturismoresort-ou-um-projeto-de-especulacao-imobiliaria/. Acesso em 07-jan-2021.

LIMA, José Auricélio Gois. A natureza contraditória da territorialização da produção de energia eólica no nordeste do Brasil (Tese de doutorado em Geografia, UFF). Niterói: 2019.

Parecer SEI nº 3/2020-GR-2/GABIN/ICMBio. Disponível em em https://sei.icmbio.gov.br/autenticidade informando o código verificador 8376885 e o código CRC 7124663B. Acesso em 05 de abril de 2021.

BRASIL. Decreto 16 de novembro de 2000. Cria a Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba.  Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/DNN9084.htm acesso em 05 abr. 2021.BRASIL. Decreto de 28 de agosto de 1996. Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/Anterior%20a%202000/1996/Dnn4368.htm acesso em 05 abr. 2021.

Caso Teixeira Onze – RN

Autoras: Ligia Moreira da Rocha1, Joane Luiz Dantas Vieira Batista1,2, Leonete Roseno do Nascimento3

1 – Oceânica – Pesquisa, Educação e Conservação, 2 – Rede MangueMar, 3 – Rede de Educação Cidadã/RN

O litoral do Rio Grande do Norte apresenta 410 km de extensão e uma multiplicidade de ecossistemas costeiro-marinhos como praias, campos dunares com lagoas, estuários, formações recifais, falésias e restingas. As atividades econômicas desenvolvidas nos 23 municípios da zona costeira são múltiplas e 14 estão diretamente relacionadas a conflitos socioambientais na zona costeira: parques eólicos, agricultura, pesca artesanal e industrial, comércio formal ou informal, produção de cana-de-açúcar, salineiras, pólo petrolífero, indústrias, turismo, ocupações irregulares permanentes em áreas protegidas, carcinicultura, piscicultura, construção civil, produção de lenha, atividade de concessionária de água e esgoto, atividade imobiliária-turística, lazer e esportes náuticos,  atividade de circulação de veículos automotores (DOMINGOS e DUARTE, 2019). As comunidades litorâneas são também diversas: têm sua origem nas famílias ligadas à pesca artesanal e agricultura familiar, que por sua vez foram constituídas principalmente por povos indígenas, africanos e colonizadores. A população costeira ligada à pesca artesanal está entre os grupos mais vulnerabilizados no estado e vem sendo posta à margem das políticas públicas, tornando-se invisível e, por isso, vivendo uma vida precarizada.

Neste mosaico de contextos, as injustiças socioambientais se sobrepõem, e o caso da comunidade de Enxu Queimado é um exemplo vivo da resistência que comunidades pesqueiras  devem ter para continuar existindo. Como se não bastasse a sobreposição de crises extremas vividas (derramamento do petróleo na costa brasileira iniciada em setembro 2019 e a pandemia do Covid-19 iniciada em março de 2020) impactando violentamente as vendas e o valor do pescado vendido, o ambiente de trabalho e o modo de vida das pessoas, a comunidade de Enxu Queimado enfrenta um processo de expulsão do seu território por parte da incorporadora Teixeira Onze Incorporações LTDA – ME. Enxú Queimado é uma comunidade pesqueira do litoral do RN, no município de Pedra Grande. Com origem aproximada em 1920, a ocupação centenária tem atividades oriundas da pesca, agricultura e criação de animais, utilizando áreas comuns para esses fins. Além das casas e do território da pesca, as famílias têm criações extensivas de bovinos, caprinos, ovinos e suínos em áreas que definem como sendo de expansão da comunidade.

Em junho de 2020 a Rede MangueMar/RN[1] recebeu a denúncia que a incorporadora aproveitou a crise sanitária para ameaçar a comunidade e reivindicar a reintegração de posse de praticamente toda a comunidade, através de Processo nº 0800205-36.2020.8.20.5151, na Comarca de São Bento do Norte. O representante da empresa apareceu no vilarejo e demarcou terras, colocou cercas, mediu casas, utilizando serviços de engenharia e topografia, sem conversar com os moradores. Contratou também dois seguranças para amedrontar a todos e derrubar os barracos construídos na área de expansão, zona rural ocupada pelos moradores para impedir o avanço da incorporadora sobre Enxu Queimado.  De acordo com moradores, já houve várias ameaças como colocar um trator por cima dos barracos para queimar (OLIVEIRA, 2020). A incorporadora propôs à comunidade regularizar suas casas para, por meio da escritura pública, vendê-las com um melhor preço, alegando a “chegada do progresso”, mas na verdade fomentando a evasão da comunidade, que provocaria a ruptura com seus vínculos ancestrais, profissionais, afetivos e familiares com a região (BARBOSA, 2021).

O conflito em Enxu Queimado começou em 2007, quando a Incorporadora Teixeira Onze comprou 184,76 hectares de terra por R$ 60 mil. No entanto, existem dois registros para a compra de terrenos diferentes com o mesmo valor: um deles de 144,57 hectares e outro de 184,76 hectares (OLIVEIRA, 2020). Por levantamento feito pela Unidade de Saúde de Enxu Queimado em junho de 2020, os 184,766 hectares adquiridos envolvem duas áreas: uma onde estão as 810 casas e 554 famílias (total de 2.389 moradores) e outra onde os moradores têm criações de animais e plantações como de macaxeira e batata. Pelo registro, a Teixeira Onze comprou o terreno da advogada recifense Dulce Maria Gueiros Leite, mas de acordo com os moradores de Enxu Queimado, essa advogada nunca foi dona das terras, apesar de ter construído uma casa de praia na comunidade.

Através do apoio da Rede MangueMar com parceiros, a comunidade de Enxu Queimado conseguiu realizar, em agosto de 2020, na colônia dos pescadores Z-32, uma reunião com o Secretário Estadual do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar (SEDRAF), também coordenador do Comitê de Resolução de Conflitos Fundiários Rurais, cujo objetivo é prevenir, mediar, conciliar e solucionar na esfera administrativa, de forma justa e pacífica, os conflitos fundiários no RN. Nesta reunião coube à SEDRAF: (i) encaminhar ofício ao Senhor Juiz de Direito da Comarca de São Bento do Norte, esclarecendo as providências administrativas que o Comitê de Resolução de Conflitos Fundiários Rurais está tomando em relação ao caso específico; (ii) Oficiar ao Cartório Único de Pedra Grande para realizar estudo da cadeia dominial dos imóveis. Coube aos representantes da Comunidade de Enxu Queimado fazer Boletim de Ocorrência nos casos de ameaças existentes e constituir advogado para defesa no processo de Reintegração/Manutenção de Posse. Coube à Polícia Militar intervir em qualquer ação de violência que ocorra na comunidade em função do conflito existente. Coube à Prefeitura Municipal de Pedra Grande ver a parceria com o estudo da topografia para agilização das coordenadas definidas das terras em questão. A Câmara Municipal ficou de acompanhar e colaborar com a gestão neste caso.

Com a intervenção do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte em 31 de agosto de 2020, a reintegração de posse foi temporariamente suspensa. O desembargador considerou que não havia dúvidas em quem de fato exerce a posse da terra em Enxu Queimado, além de tampouco ter sido demonstrado que a empresa teria a posse prévia da terra. Apesar da primeira vitória conquistada, a cadeia dominial dos hectares em questão não foi esclarecida, cabendo ainda recurso no processo. Os relatos de intimidação continuaram, assim como permaneceram em risco o território e o modo de vida em Enxu Queimado. A comunidade se manteve organizada, com abaixo assinado online para obter apoio e em campanha por visibilidade e justiça.

No dia cinco de abril de 2021 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ/RN) manteve a suspensão da reintegração de posse. A  Incorporadora Teixeira Onze havia recorrido da decisão anterior, mas teve a liminar negada por falta de documentos que provassem a posse da terra. Com a nova decisão, a terra fica garantida aos moradores locais da comunidade de Enxu Queimado Esse é mais um caso emblemático em que se tenta dar legalidade a uma injustiça realizada contra as comunidades litorâneas que ocupam o litoral há gerações.

Referências: 

BARBOSA, G. F. Enxu Queimado: uma comunidade de resiste. Carta Capital, 10/09/2020. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/enxu-queimado-uma-comunidade-de-pescadores-que-resiste/.

DOMINGOS, J, V. M. e DUARTE, M. C. S. Conflitos socioambientais na zona costeira do RN: diagnósticos e reflexões para o seu enfrentamento. XXX Congresso de Iniciação Científica e Tecnológica da UFRN, 2019. http://www.cic.propesq.ufrn.br/trabalhos.php##resultado

OLIVEIRA, C.  Comunidade pesqueira acusa incorporadora de ameaças e destruição de barracos no RN. Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 25 de Agosto de 2020.


[1] A Rede MangueMar é uma articulação que envolve Colônias e Associações de Pesca Artesanal, movimentos e articulações de pescadores e pescadoras, pastorais sociais, ambientalistas, pesquisadores/as, instituições de pesquisa e ensino, ONGs/OSC e cidadãos(ãs) comuns que lutam pela sustentabilidade socioambiental da Zona Costeira e Marinha Brasileira. No Rio Grande do Norte, a Rede MangueMar/RN foi iniciada em 2007, conta com 48 instituições e realiza encontros mensais para discutir os conflitos socioambientais no litoral potiguar.