Autores: Rodrigo Lima Guerra de Moraes[1], Beatriz Mesquita[2], Mariana Vidal³, Teresinha Filha¹
O litoral do Estado de Pernambuco, historicamente, tem a pesca artesanal como a principal atividade de subsistência e modo de vida de sua população. Foi a pesca artesanal e as pequenas lavouras associadas, que propiciaram a manutenção de mão-de-obra para o crescimento da tradicional cultura do açúcar no estado (FREYRE, 1937), visto que na entressafra (período de inverno), a maioria dos trabalhadores eram (e ainda o são) excluídos da folha de pagamento das usinas.
Nas últimas décadas, com o deslocamento da produção açucareira para outras regiões do país e o consequente enfraquecimento dessa indústria no litoral pernambucano, a economia está se diversificando para áreas como turismo, setor portuário, petróleo e gás, entre outras (LIMA et al, 2007). O desenvolvimento econômico que acontece nas áreas costeiras e marinhas têm sido impulsionado e está sendo chamado de economia azul (WORLD BANK, 2017; BENNETT et al, 2021).
Esse novo direcionamento tem um forte componente de indução por meio de subsídios, isenção fiscal e políticas públicas por parte do governo (GUMIERO, 2018; OLIVEIRA e SORIA, 2020). As comunidades tradicionais pesqueiras são excluídas desses processos. O que se acompanha é o contínuo desprezo do governo por comunidades que historicamente, ocupam territórios no litoral e continuam a reproduzir meios de vida e produção não reconhecidos pelo Estado. Essa diferente visão de mundo e desenvolvimento do Estado, fundamentada na reprodução do capital (HARVEY, 2011) para com parte da sociedade (comunidades tradicionais e extrativistas), causa uma série de injustiças ambientais, configurando um típico caso de “injustiça azul” (BENNETT et al, 2021).
Em Pernambuco, a instalação do Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), localizado na grande Recife, distante aproximadamente 50 Km dessa capital, vem sendo realizada desde a década de 1970. A partir dos anos 90 o projeto de cluster econômico (conglomerado de indústria[18] s e empresas) foi priorizado pelo governo, intensificando os impactos sobre as comunidades locais. Desde sua concepção, o projeto do CIPS não considerou a existência de comunidades tradicionais na área escolhida para sua implantação. Ao longo do tempo esse erro estratégico de planejamento desencadeia conflitos territoriais (Morreti e Cox, 2016).
Além disso, a chegada de grandes empresas como a Refinaria Abreu e Lima, Petroquímica Suape, Termoelétricas e Estaleiros, como o Estaleiro Atlântico Sul, não têm tido o devido controle pelo Estado. ALVES et al.(2019) citam a completa desobediência às leis ambientais; a irresponsabilidade ambiental das indústrias, e, principalmente, a indevida atuação dos órgãos ambientais.
Dentre algumas injustiças ambientais como expulsão e cerceamento de comunidades nesse território, destacamos a Comunidade Quilombola Ilha de Mercês. Formado por alguns núcleos populacionais descendentes de negros e negras libertas que outrora foram escravizados, o território que corresponde à Comunidade Quilombola Ilha de Mercês¹ vem sendo dividido e fragmentado há mais de quatro décadas pela construção e expansão do CIPS. Estima-se que cerca de 800 famílias ocupavam essa região, porém hoje em dia, apenas 230 seguem resistindo no território, segundo a Associação Quilombola[3]. Além da Comunidade Quilombola, outras comunidades pesqueiras e extrativistas ocupavam tradicionalmente as ilhas de Tatuoca e Cocaia.
Figura 1 – Imagens cronológicas do barramento realizado no território de Suape: (a) 2007 – Período anterior ao barramento do rio Tatuoca; (b) 2010 – já é possível visualizar o barramento; (c) 2020 – situação atual.
Fonte: Elaboração própria em Google Earth
A ilha de Cocaia, cujos moradores e moradoras viviam exclusivamente da pesca, foi a primeira a ser afetada para dar origem às obras do Porto de Suape. Posteriormente, a ilha de Tatuoca também deixou de ser habitada pela população tradicional para a construção do Estaleiro Atlântico Sul. Além disso, a instalação da Refinaria Abreu e Lima e demais obras que compõem o CIPS, demandaram a construção de uma malha viária interligando dezenas de empresas e indústrias dentro do território tradicional quilombola, dividindo a comunidade primeiramente em duas e posteriormente em quatro. A construção dessas vias de acesso ao porto (Ex: TDR – Norte, Via Portuária) separou os rios Ipojuca, Massangana e Tatuoca, que outrora, nos períodos de maré cheia, formavam um único corpo hídrico conectando um maciço de manguezal.
Por último, o dique de enrocamento com via de acesso ligando o Estaleiro Atlântico Sul ao Porto, chamado popularmente como “barramento” (Figura 2), cortou praticamente toda a desembocadura do rio Tatuoca, impactando severamente o fluxo das marés e a dinâmica hidrológica. O rio Tatuoca, que teve sua nascente aterrada pela terraplanagem da Refinaria Abreu e Lima, ficou sem vazão, aprisionado entre as vias, culminando em um corpo d’água praticamente sufocado[4].
Figura 2 – Enrocamento com via de acesso ligando o Estaleiro Atlântico Sul ao Porto. Foto: Hamilton Tenório – Acervo Ação Comunitária Caranguejo Uçá
Os impactos gerados resultam na escassez dos recursos pesqueiros e na morte de espécies vegetais de mangue, uma vez que já não são mais banhadas pelas marés, o que compromete a resiliência do ecossistema manguezal (ALMEIDA et al, 2014). Por se tratar de uma Comunidade Tradicional, a perda territorial de áreas agricultáveis, a supressão vegetal e o desmatamento de espécies frutíferas são outros fatores que colocam em risco as principais atividades (pesca, agricultura e coleta de frutas) que geram renda para as famílias.
Outros impactos são ainda citados pela comunidade local: esgoto da refinaria que é jogado no manguezal, a maré invadindo casas, produtos químicos da refinaria, poluentes atmosféricos, poluição sonora (ALVES et al., 2019). A Comunidade Quilombola Ilha de Mercês sofre, além dos impactos ambientais, impactos sociais e culturais, danos morais, materiais, psicológicos e físicos devido à relação truculenta, opressora e violenta de vigilantes e agentes que atuam em nome de Suape. Estas ações caracterizam uma violação a todos os direitos essenciais da comunidade [5].
Diversas situações de apreensão de pescados, de apetrechos de pesca e até de agressão física são de conhecimento da Defensoria Pública da União, do Ministério Público de Pernambuco e Ministério Público Federal, que expediram uma recomendação conjunta para que os assédios e tais atuações violentas cessem.
Recentemente houve uma tentativa extrajudicial, em vão, para que o CIPS assinasse um Termo de Ajustamento de Conduta para retirar o barramento do rio Tatuoca, uma vez que o licenciamento para essa obra previa que fosse temporária e não definitiva. A gestão de Suape alega que mantém um cronograma de execução até Junho de 2021 para o desenrocamento parcial com processos licitatórios para estudo de avaliação de impacto ambiental que visa indicar qual intervenção é a mais adequada (RACISMO AMBIENTAL, 2020). Dessa forma, perdura há mais de 10 anos como uma imposição na realidade do território. Isto significa um descumprimento das normas e acordos celebrados no momento de início da obra.
Referências:
AGÊNCIA NACIONAL DAS FAVELAS (2021). Complexo Industrial Portuário de Suape comete racismo ambiental e viola direitos humanos. Disponível em: https://www.anf.org.br/complexo-industrial-portuario-de-suape-comete-racismo-ambiental-e-viola-direitos-humanos/. Último acesso em: 1 de Março de 2021
ALMEIDA, V. C. ; COELHO-JR, C ; FEITOSA, F. A. N. ; PASTOR, D. J. ; MONTE, G. R. . Caracterização estrutural do manguezal do rio Tabatinga, Suape, PE, Brasil. Tropical Oceanography (Online), v. 42, p. 33-47, 2014.
ALVES, S.G. Injustiças Socioambientais e Interferências na Saúde de Populações Localizadas na Área do Complexo Industrial Portuário de Suape. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente, UFPE. Recife, 2016.
ALVES, S. G. et al. Rexistência de comunidades tradicionais frente às injustiças ambientais das ações do complexo industrial portuário de Suape-PE. Gestão e sustentabilidade ambiental, 2019. v. 8, n. 3, p. 582–605.
BENNETT, N. J. et al. Blue growth and blue justice: Ten risks and solutions for the ocean economy. Marine Policy, 2021. v. 125, n. December 2020, p. 104387. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.marpol.2020.104387>.
FREYRE, G. Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937.
GUMIERO, R. G. Economic and social dimensions of PAC impacts in the Suape-PE port industrial complex in 2007-2015. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 2018. v. 14, n. 3, p. 101–123.
HARVEY, D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
Lima, J. P. R.; Sicsú, A. B.; Padilha, M. F. F. G. (2007) Economia de Pernambuco: Transformações Recentes e Perspectivas no Contexto Regional Globalizado. Revista Econômica do Nordeste, v. 38, p. 525-541.
MORETTI, R.; COX, M. Impactos socioambientais ao longo da implantação e consolidação do Complexo Industrial Portuário de Suape – PE. Revista Gaia Scienta, v. 10, p. 98-105, 2016.
OLIVEIRA, V. de; SORIA, S. Faces do “novo” desenvolvimento: o trabalho na construção civil em Suape (PE/Brasil). Espacio Abierto, 2020. v. 29, n. 1, p. 205–224.
RACISMO AMBIENTAL (2020). Suape se recusa a formalizar acordo para salvar manguezal do rio Tatuoca. Blog Combate Racismo Ambiental. Disponível: https://racismoambiental.net.br/2020/10/28/suape-se-recusa-a-formalizar-acordo-para-salvar-manguezal-do-rio-tatuoca/. Último acesso em: 1 de março de 2021.
WORLD BANK AND UNITED NATIONS DEPARTMENT OF ECONOMIC AND SOCIAL AFFAIRS. The Potential of the Blue Economy: Increasing Long-term Benefits of the Sustainable Use of Marine Resources for Small Island Developing States and Coastal Least Developed Countries. World Bank, Washington DC, 2017.
[1] Ação Comunitária Caranguejo Uçá
[2] Fundação Joaquim Nabuco
³ Fórum Suape
[3] Comunicação pessoal, Associação Quilombola de Mercês, 2020.
[4] Rios Livres Mangues Vivos. Campanha de comunicação por Fórum Suape e Ação Comunitária Caranguejo Uçá, 2021.
[5] Rios Livres Mangues Vivos. Campanha de comunicação por Fórum Suape e Ação Comunitária Caranguejo Uçá, 2021.